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ArtigosDireitos Autorais: responsabilidade dos clubes de futebol sob as paródias musicais cantadas por suas torcidas

05/09/2023by admin0

Por Rodrigo Couto Oliveira

“A semana inteira, fiquei esperando

Pra te ver Corinthians, pra te ver jogando

Quando a gente ama, não mede esforço

Pra te ver jogar, te ver jogar, te ver jogar”

Não, você não está enganado. O trecho acima se trata de uma paródia intitulada “Vou cantar pro Timão ganhar” realizada pela torcida do Corinthians, que tem como inspiração a música “Não quero dinheiro (Só quero amar)” de autoria do célere cantor brasileiro Tim Maia.

Tal prática não é exclusividade da torcida do Corinthians. Nesse ano, impulsionada pela boa campanha do time, a torcida do Botafogo tem viralizado em razão das paródias “Caiu no Tapetinho”, adaptação para “Caiu no meu papinho” do MC Kevin O Chris, e “Segovinha”, inspirada em “Vai Novinha” do cantor Kaio Viana.

Diante de tantos casos de inspiração das torcidas de futebol, surge uma questão jurídica: a reprodução, pelas torcidas, da obra de terceiros de forma não autorizada geraria alguma implicação aos clubes de futebol?

A Lei dos Direitos Autorais, n. 9.610/98, dispõe, no art. 7º, que as composições musicais, tenham ou não letra, são protegidas pela criação do espírito, bem como as adaptações, traduções ou outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova.

Dessa forma, a Lei concede ao autor – pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica –, os direitos morais e patrimoniais sobre a obra.

Os direitos morais estão previstos no art. 24 da Lei 9.610/98, e incluem, dentre outros, os direitos de: reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra; de conservar a obra inédita; de retirar de circulação a obra ou suspender qualquer forma já autorizada; assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que possam prejudicá-lo ou atingi-lo em sua reputação e honra.

Os direitos patrimoniais, por sua vez, estão previstos no art. 28, e conferem exclusivamente ao autor as prerrogativas de utilizar, fruir e dispor da obra. O art. 29 elenca situações que dependem de autorização prévia e expressa do autor, citando, dentre elas: a reprodução, parcial ou integral; a edição; a adaptação, o arranjo musical e quaisquer outras transformações; a utilização, direta ou indireta, da obra mediante radiofusão sonora ou televisiva.

Embora a Lei preveja uma série de direitos aos autores, há, também, previsão de limitação aos direitos deles. O art. 47 dispõe que “São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito.”

Há de se analisar, portanto, se as músicas entoadas pelos torcedores nos estádios se enquadrariam como paráfrase ou paródia, sendo, se for o caso, incluídas na exceção contida no art. 47 da Lei 9.610/98 e consequentemente abrangidas pela limitação aos direitos do autor.

Acerca da diferença entre paródia e paráfrase, Eduardo Vieira Manso dispõe:

“(…) entre a paródia e a paráfrase, há distinções relevantes, não só de forma, como de fundo: enquanto na paráfrase a forma, necessariamente, há de ser outra (tanto no que concerne à forma externa como quanto à forma interna, o que justifica a condição de não ser ‘verdadeira reprodução da obra originária’), na paródia ela somente sofre mudança na forma interna, porquanto a paródia é mesmo antítese da obra parodiada. Não se pode esperar que a paródia não reflita a obra originária (reproduzindo-a, portanto), porque, então, de paródia não se tratará. A nova forma de que se investe a obra paródica mantém a mesma estrutura, a mesma organização, a mesma composição da obra parodiada, somente lhe alterando o tom: é uma imitação muito próxima, que, contudo, adquire individualidade própria, exatamente em razão dessa transformação burlesca”. (MANSO, 1980, p. 329)

De acordo com Rodrigo Moraes (2008, p. 192), “a paródia consiste num limite ao exercício da prerrogativa extrapatrimonial de respeito à obra. O parodista não precisa, pois, pedir prévia e expressa autorização do autor da obra parodiada.” Afirma o autor que “a paródia não pode ser uma reprodução da obra original. Nela tem de existir certo grau de criatividade, sob pena de ser considerada plágio, bem como não pode ridicularizar, maliciosamente, o autor da obra originária, depreciando a sua honra. Além disso, não pode atingir direitos da personalidade de terceiros.

Manso indica duas condições básicas para que uma paródia seja lícita: a) fidelidade de seu autor à inequívoca intenção de fazer rir; b) a paródia deve conter e refletir efetiva contribuição de seu autor, para que não haja simples deturpação da obra parodiada. Cita que “a paródia ‘não é lícita senão quando ela é realizada com o desejo de fazer rir’, e ‘na medida dos empréstimos que o parodista pode fazer da obra parodiada” (MANSO, 1980, p. 331)

Com entendimento diverso, José de Oliveira Ascensão (1997), dispõe:

“a paródia não pode limitar-se ao mero aproveitamento do tema anterior. Tem de se apreciar o seu próprio grau de criatividade, para julgar daquilo a que se chama o ‘tratamento antitético do tema’. Por aqui se vê que o caráter criador não pode deixar de estar presente. Aliás, a paródia não é sequer uma transformação da obra preexistente, pois nesse caso esta teria de ser autorizada. A obra anterior só dá o tema, mas a paródia faz uma criação peça por peça de que resulta um novo conjunto; por isso se fala no tratamento antitético do tema.” (grifo nosso)

Percebe-se, pela doutrina, a nebulosidade do tema, evidenciando-se a falta de critérios objetivos para caracterizar a paródia e definir seus limites frente aos direitos de autor. Dessa forma, há, em regra, bastante subjetividade do julgador nesses casos.

Em recente julgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ), estabeleceu-se os seguintes requisitos para o reconhecimento da licitude da paródia:

(i) existência de certo grau de criatividade (ou seja, a obra derivada não poderá retratar verdadeira reprodução da obra parodiada); (ii) ausência de efeito desabonador da obra originária; (iii) respeito à honra, à intimidade, à imagem e à privacidade de terceiros (artigo 5º, inciso X, da Constituição de 1988); (iv) observância do direito moral de ineditismo do autor da criação primeva (artigo 24, inciso III, da Lei 9.610/1998); (v) atendimento da “regra do teste dos três passos” (three-step-test), que viabiliza o exercício do direito de reprodução por terceiros não autorizados em casos especiais, que não conflitem com a exploração normal da obra nem prejudiquem, injustificadamente, os interesses legítimos do autor; e (vi) ausência de intuito comercial, tendo em vista o acréscimo de fundamentação trazido pelo eminente Ministro Raul Araújo. (REsp n. 1.810.440/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 24/8/2022, DJe de 11/10/2022.)

O Relator desse processo foi o Exmo. Min. Luis Felipe Salomão. O Exmo. Min. Raúl Araújo acrescentou ao tema fundamentando que, como se tratava de paródia com exploração econômica, dever-se-ia respeitar o “teste dos três passos”, que assevera que é lícita a paródia quando realizada “(I) em casos excepcionais; (II) não conflitem com a exploração normal da obra; e (III) não prejudiquem, injustificadamente, os interesses legítimos do titular do direito.”

De acordo com o Min. Raúl:

“Trata-se de interpretação adequada do art. 47 da Lei 9.610/98, de modo a impedir o uso abusivo da paródia, quando presente, no caso, precipuamente a finalidade meramente comercial. (…) Ora, entre os interesses legítimos do autor estão os de ordem patrimonial, assegurando ao titular a justa remuneração pelo trabalho criativo que elaborou, do qual não se pode livremente aproveitar o empresário capitalista, utilizando, sem autorização, a obra alheia na forma parodiada para atrair maior clientela para seus negócios e incrementar expressivo lucro às custas do trabalho do autor. (…) Assim, é de se concluir que, nos casos de paráfrases e paródias feitas com finalidade comercial, para gerar publicidade comercial de produtos e serviços ofertados no mercado de consumo, é sim necessária a prévia autorização do autor da obra original, sob pena de ser devida indenização.” (REsp n. 1.810.440/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 24/8/2022, DJe de 11/10/2022)

Nesse contexto, em caso que ainda está em trâmite, a família do cantor Tim Maia processou o Sport Club Corinthians Paulista pela utilização do trecho destacado no início deste artigo durante o Mundial de Clubes da Fifa de 2012. Na ocasião, foi transmitido comercial televisionado, bem como veiculados posts em redes sociais, reproduzindo a paródia criada pela torcida. Além disso, trechos da paródia foram estampados em camisetas usadas pelos jogadores.

Em sua fundamentação, a Exma. desembargadora Maria do Carmo Honório aduziu:

“Cuida-se de grande e famoso time de futebol que possui elevada receita, oriunda dos direitos de transmissão de televisão, patrocínios e publicidades, arrecadação de jogos, dentre outros. Nesse contexto, é certo que o trecho “A semana inteira fiquei esperando, pra te ver Corinthians, pra te ver jogando (…)” não constitui mera paráfrase da letra original (“A semana inteira fiquei esperando, pra te ver sorrindo, pra te ver cantando”). Isso porque, além de reproduzir na íntegra o trecho “a semana inteira, fiquei esperando”, manteve a melodia da música amplamente conhecida, de forma que não pode ser considerada como acessório ao conteúdo reclamado pelos autores (…) A alegação do réu, no sentido de que a música foi criada pela torcida do time e reproduzida por vídeo produzido e editado pela TV Globo, não afasta a sua responsabilidade, porquanto houve exploração econômica da canção, inclusive com o uso do trecho estampado nas camisetas dos jogadores (págs. 74/78), de tal forma que impulsionou a marca do time e de seus patrocinadores(…) Nessas condições, demonstrado o caráter não acessório da reprodução parcial da letra da música e a exploração econômica por parte do réu, sem autorização dos titulares dos respectivos direitos autorais, está configurado o prejuízo patrimonial e o dever de indenizar, pois nada receberam pela utilização da obra.” (TJSP; Apelação Cível 1015929-42.2017.8.26.0008; Relator (a): Maria do Carmo Honorio; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 37ª Vara Cível; Data do Julgamento: 27/07/2023; Data de Registro: 31/07/2023)

Dessa forma, em sede de acórdão, decidiu-se pela manutenção da decisão de primeira instância que condenou o Corinthians ao pagamento de indenização à família do Tim Maia em decorrência de utilização de paródia com intuito de obter proveito econômico.

Ressalta-se que as propagandas foram elaboradas e veiculadas pela TV Globo, fato que, para a Desembargadora, não afastou a responsabilidade do Corinthians, tendo em vista que este explorou economicamente a canção, inclusive com uso de trecho estampado na camisa de seus jogadores.

Diante desse cenário, retornando ao questionamento inicial proposto – se um clube de futebol poderia ser responsabilizado pela paródia de uma música realizada por sua torcida -, entende-se que, em regra, paródias criadas e veiculadas pelas torcidas não geram implicações jurídicas aos clubes de futebol pelos quais torcem – o que não quer dizer que não possam gerar implicações às próprias torcidas.

De outro modo, caso o clube de futebol se aproprie da paródia, utilizando-a em desconformidade com os requisitos estabelecidos pelo art. 47 e pela jurisprudência, especialmente caso haja finalidade comercial na exploração da paródia, deve haver autorização prévia e expressa do autor da obra original para que o clube não venha a incorrer em ato ilícito e consequentemente ser obrigado a indenizar.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. Rio de Janeiro : Renovar. 1997.

BRASIL. Lei nº. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 1998.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça; REsp n. 1.810.440/SP. Embargante: Emi Songs do Brasil Edições Musicais LTDA. Embargada: Diretório Regional do Partido da República – São Paulo. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 24/8/2022, DJe de 11/10/2022.

MANSO, Eduardo Vieira. Direito autoral : exceções impostas aos direitos autorais: derrogações e limitações – São Paulo : José Bushatsky, 1980.

MORAES, Rodrigo. Os direitos morais do autor: repersonalizando o direito autoral. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2008.

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 1015929-42.2017.8.26.0008. Apelantes: W.E.M LTDA. e C.M. Apelado: S.C.C.P. Relatora: Maria do Carmo Honório. Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 37ª Vara Cível; Data do Julgamento: 27/07/2023; Data de Registro: 31/07/2023

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Rodrigo Couto Oliveira é advogado e assistente jurídico da Federação Nacional das Apaes; é  pós graduando em Propriedade Intelectual e em Direito Empresarial. É colaborador de conteúdo do escritório Barreto Dolabela.

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