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ArtigosQuestionando a soberania dos veredictos do júri: uma análise do RHC 229558 AGR

O Tribunal do Júri detém uma relevância extraordinária dentro do atual sistema jurídico. Sua origem no Brasil remonta ao ano de 1822 e desde então foi incorporado pelas sucessivas constituições do país, cada uma conferindo-lhe competências e aprimoramentos específicos. Essa evolução culminou na aplicabilidade que o Tribunal do Júri possui no ordenamento jurídico atual.

É claro que a Constituição da República de 1988 estabelece o Tribunal do Júri como uma cláusula pétrea, ou seja, uma disposição fundamental e imutável, embasada em princípios específicos. Esses princípios incluem a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Considerando que os princípios são fundamentais para os direitos e garantias estabelecidos na Constituição de 1988 e têm força normativa, ou seja, implicam obrigações vinculativas, torna-se evidente a importância do Tribunal do Júri para o ordenamento jurídico atual. Este estudo enfatiza o Tribunal do Júri em uma análise crítica da Soberania dos Veredictos. Nesse sentido, a soberania dos veredictos refere-se à decisão dos jurados baseada em sua consciência, não necessariamente na lei, e implica que nenhum outro órgão judiciário pode substituir uma decisão por eles tomada. Isso confere ao veredicto emitido pelo Conselho de Sentença um caráter de inalterabilidade.

Contudo, embora o constituinte tenha empregado a expressão “soberania”, que sugere supremacia, o objetivo é avaliar até que ponto a decisão é verdadeiramente soberana e em quais circunstâncias suas determinações podem ser alteradas, sem violar o preceito constitucional ou desrespeitar a proteção à dignidade da pessoa humana.

A Constituição da República de 1988, em seu artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea “a” (XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: “a” a plenitude de defesa), e no mesmo artigo, inciso LV, garante a plenitude de defesa e a ampla defesa, respectivamente. É importante destacar que esses dois conceitos não se confundem: enquanto a plenitude de defesa é mais abrangente do que a ampla defesa. No Tribunal do Júri, a plenitude de defesa permite o uso de todos os meios possíveis para convencer os jurados, garantindo uma defesa completa. Já a ampla defesa, tanto em processos judiciais quanto administrativos, refere-se à defesa técnica relacionada aos aspectos jurídicos, incluindo o direito de apresentar todos os elementos necessários para esclarecer a verdade no processo.

Portanto, tanto a ampla defesa quanto o princípio da plenitude de defesa atribuído ao Tribunal do Júri são essenciais para garantir o direito à liberdade, que também é assegurado pelo devido processo legal. Um processo sem uma defesa adequada e suficiente não pode alcançar a justiça, muito menos garantir um direito fundamental conforme previsto na Constituição.

A plenitude de defesa é um princípio fundamental no Tribunal do Júri. Além disso, durante a sessão do júri, a defesa também pode ser reforçada pelo fato de que o acusado tem a oportunidade de realizar sua autodefesa. Isso significa que ele tem o direito de explicar aos jurados e ao juiz togado tudo que for relevante para sua defesa, abordando todas as acusações e fatos narrados.

A soberania dos veredictos é o cerne do Tribunal Popular, garantindo-lhe o pleno exercício do poder jurisdicional e não apenas a emissão de uma opinião sujeita à rejeição por qualquer magistrado togado. Nesse sentido, ser soberano implica alcançar a supremacia, o mais alto grau em uma escala, o poder absoluto acima do qual não há outro. Aplicado ao contexto do veredicto popular, isso significa garantir que seja a voz final a decidir o caso quando este é apresentado ao julgamento no Tribunal do Júri.

O legislador constituinte, ao estabelecer o princípio da soberania dos veredictos como uma norma vinculativa para o Tribunal do Júri, visou garantir a expressão da vontade popular por meio dos votos dos jurados, que são pessoas leigas e julgam de acordo com suas próprias concepções, não necessariamente embasadas na lei. A expressão “soberania dos veredictos” foi utilizada para indicar que a decisão do júri não pode ser substituída por nenhuma outra que não seja proveniente de um novo julgamento realizado por outro Tribunal Popular.

Entretanto,seguindo a linha de pensamento acerca da possibilidade de recorrer das decisões do júri, Mirabete (2006, p. 496) declara que:

A soberania dos veredictos dos  jurados, afirmada pela Carta Política, não  exclui a recorribilidade de suas decisões, sendo assegurada com  a devolução dos autos ao Tribunal do Júri para que profira novo julgamento, se cassada a decisão recorrida pelo princípio do duplo grau de jurisdição.  Também não fere o referido princípio a possibilidade da revisão criminal do julgado do Júri, (LXXXI) a comutação de penas etc. Ainda que se altere a decisão sobre o mérito da causa, é admissível que se faça em favor do condenado, mesmo porque  a  soberania  dos  veredictos  é uma “garantia constitucional individual” e a reforma ou alteração da decisão em   benefício do condenado não lhe lesa qualquer direito, ao contrário beneficia.

 

Portanto, argumenta-se que o princípio da soberania dos veredictos não elimina a possibilidade de recorrer das decisões do Tribunal do Júri. Ou seja, é admissível um novo julgamento, desde que conduzido por um novo Tribunal Popular, com um novo Conselho de Sentença, e não sujeito a reformulação por um juiz togado. Isso se deve ao fato de que os jurados leigos representam a vontade popular.

O legislador constituinte almejou conferir soberania ao júri, tornando-o a instância final para decidir sobre os crimes dolosos contra a vida, com supremacia e independência. No entanto, não há qualquer indicação de que sua decisão deva ser irrevogável. Portanto, é plenamente aceitável que, caso ocorra algum equívoco, o tribunal popular se reúna novamente para reavaliar o caso. Ao afirmar que um Tribunal é soberano, significa que alcançou a supremacia, o mais alto grau em uma escala, o poder absoluto, acima do qual não há outro. Respeitar essa soberania dos veredictos implica renunciar a uma parte do poder jurisdicional atribuído ao magistrado togado, limitando-se a fiscalizar e corrigir excessos e abusos sem interferir na essência da decisão.

Os veredictos do júri são soberanos desde que assegurem o direito à liberdade. Seria contraditório, portanto, manter essa soberania e intocabilidade quando fica evidente que o júri condenou erroneamente. Nessa perspectiva, em 19 de fevereiro de 2024, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) se pronunciou no RHC 229558 AgR, rejeitando a absolvição para um crime hediondo, que é considerado imune a graça ou anistia. Decidiu-se, então, que um novo julgamento deveria ocorrer no Tribunal do Júri.

A parte recorrida alegou que a absolvição pelo Conselho de Sentença baseou-se no quesito genérico estabelecido no artigo 483, inciso III, e parágrafo 2º, do Código de Processo Penal. Com base nesse argumento, solicitou a anulação do “acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná que determinou que o réu fosse submetido a um novo julgamento pelo Tribunal do Júri, restaurando, assim, a absolvição proferida pelo Conselho de Sentença”.

No referido RHC, o cerne do debate jurídico reside em determinar se a ordem de um novo julgamento, emitida durante o processo de apelação devido à contrariedade às evidências apresentadas nos autos, viola a soberania dos veredictos, especialmente considerando a formulação genérica da questão de culpa do acusado conforme estipulado pelo artigo 483, parágrafo 2º, do Código de Processo Penal, conforme alterado pela Lei 11.689 de 2008.

Efetivamente, a questão em análise nestes autos diz respeito à modificação legislativa no formato das perguntas feitas pelo Tribunal do Júri. Conforme o disposto no artigo 483, parágrafo 2º, do Código de Processo Penal, após responder sobre a existência do crime e a sua autoria, o Conselho de Sentença deve decidir se o acusado deve ser absolvido. Essa pergunta difere substancialmente daquela prevista no texto anterior do artigo 484, onde era o juiz responsável por formular os critérios com base nas alegações de ilegalidade ou não culpabilidade apresentadas pela defesa.

Em outras palavras, é necessário examinar se a formulação de perguntas genéricas é permitida pela legislação e se os jurados têm a capacidade de absolver os réus em todas as situações sob a competência do Tribunal do Júri. Segundo o STF, o princípio a ser seguido é o da legalidade constitucional, ou seja, é necessário verificar se as margens de interpretação concedidas ao legislador ordinário estão em conformidade com os limites estabelecidos pelo texto constitucional.

Ao término do julgamento, a Turma, por maioria de votos, decidiu acatar o agravo regimental, confirmando a decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná que ordenou a realização de um novo julgamento do réu pelo crime de homicídio triplamente qualificado. Senão vejamos:

 

Ementa: PROCESSUAL PENAL E CONSTITUCIONAL. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. QUESITO GENÉRICO. ABSOLVIÇÃO. CLEMÊNCIA. RECORRIBILIDADE. CRIME HEDIONDO. FEMINICÍDIO. INSUSCETIBILIDADE DE GRAÇA OU ANISTIA. SUBMISSÃO NOVO JULGAMENTO. 1. Se, de um lado, é admissível a utilização de critérios extralegais de exculpação, de outro, não é possível tornar irrecorrível a decisão do júri por mera aplicação do quesito genérico. 2. Não cabe, no âmbito do Tribunal do Júri, investigar a fundamentação acolhida pelos jurados, já que não possuem a obrigação de justificar seus votos. No entanto, nada há no ordenamento jurídico que vede a investigação sobre a racionalidade mínima que deve guardar toda e qualquer decisão. 3. A existência de diversas novas hipóteses de absolvição diante da previsão do quesito genérico, não significa que elas sejam indetermináveis, nem ilimitadas. 4. Ainda que fundada em eventual clemência, a decisão do júri não pode implicar a concessão de perdão a crimes que nem mesmo o Congresso Nacional teria competência para perdoar. 5. Não se podendo identificar a causa de exculpação ou então não havendo qualquer indício probatório que justifique plausivelmente uma das possibilidades de absolvição, ou ainda sendo aplicada a clemência a um caso insuscetível de graça ou anistia, pode o Tribunal ad quem, provendo o recurso da acusação, determinar a realização de novo júri. 6. In casu, tendo o recorrido praticado, em tese, o crime hediondo de feminicídio, para o qual não cabe a concessão de clemência, tal hipótese sequer deve ser considerada, a fim de que possa justificar o não cabimento do recurso de apelação interposto contra a decisão absolutória do Tribunal do Júri. 7. Agravo regimental provido para o fim de manter a decisão do Tribunal de Justiça exarada para determinar a realização de novo julgamento. (RHC 229558 AgR, Relator(a): NUNES MARQUES, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 21-11-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n  DIVULG 15-02-2024  PUBLIC 16-02-2024 REPUBLICAÇÃO: DJe-s/n  DIVULG 16-02-2024  PUBLIC 19-02-2024

 

Portanto, conforme destacado nos ensinamentos doutrinários, é incontestável que a competência do Tribunal do Júri é restrita, limitando-se ao julgamento dos crimes dolosos contra a vida, tanto tentados quanto consumados. Contudo, nos casos de conexão e continência com tais delitos, o Tribunal do Júri também assume competência. Nesse sentido, a decisão do júri não pode resultar no perdão para crimes que nem mesmo o Congresso Nacional teria autoridade para perdoar. Quando não há evidência de absolvição ou quando não há indício probatório que justifique uma absolvição plausível, ou ainda quando é aplicada clemência a um caso que não admite perdão, o tribunal superior, ao acatar o recurso da acusação, pode determinar a realização de um novo julgamento.

É essencial ressaltar a importância do Poder Judiciário brasileiro em conduzir um julgamento íntegro, desde o momento da denúncia até a prolação da sentença final, sem sofrer qualquer influência que comprometa sua legitimidade perante a sociedade. Para que um julgamento seja justo, é imperativo que os jurados do júri ajam de maneira imparcial em suas decisões, evitando qualquer inclinação tendenciosa para uma das partes. Eles devem convencer-se internamente a respeito das evidências apresentadas nos autos, mantendo sua imparcialidade.

Sendo os jurados leigos equiparados aos juízes togados, todos os princípios da justiça criminal brasileira se aplicam a eles, e é imperativo que ajam com integridade e respeito à ordem constitucional. Vale ressaltar que cabe aos jurados decidir sobre a existência da imputação, determinar se houve a prática de um crime, se o acusado é o autor do delito e se estão presentes circunstâncias que justifiquem o crime ou que isentem o réu de pena, bem como avaliar a presença de agravantes ou atenuantes da responsabilidade, entre outros aspectos.

Isso significa que devem atuar de forma coesa, coerente e responsável, embora suas decisões sejam pautadas por sua consciência, não necessariamente pela lei. Além disso, é crucial que a soberania dos veredictos seja exercida de maneira imparcial pelos jurados leigos, uma vez que a imparcialidade é o objetivo primordial do Tribunal do Júri.

Assim, a soberania no júri implica que nenhum outro órgão judiciário pode substituir sua decisão em um caso por ele decidido. Para garantir uma decisão final justa, é essencial que os jurados leigos ajam de maneira imparcial em suas deliberações. Embora o constituinte tenha usado a expressão “soberania”, que sugere supremacia, em sede de apelação, é possível que o Tribunal composto apenas por Juízes togados, ao analisar o recurso, considere que a decisão do Conselho de Sentença foi claramente contrária à prova dos autos e submeta o acusado a um novo julgamento, por outro Conselho de Sentença.

A revisão criminal também pode questionar a soberania dos veredictos, sendo o recurso utilizado pelo condenado para corrigir injustiças e erros judiciários que tenham sido confirmados por uma decisão final irrevogável. Isso não compromete sua constitucionalidade. No entanto, essa possibilidade só pode beneficiar o réu e nunca prejudicá-lo.

Assim, o Tribunal do Júri deve ser compreendido como uma instituição deliberadamente incorporada pelo legislador constituinte dentro do escopo das garantias individuais do cidadão. Ele representa um estímulo ao Estado para que se apliquem cuidados especiais no tratamento com o indivíduo, priorizando a proteção à Dignidade Humana.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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Bitencourt, Cezar Roberto. “Manual de direito penal: parte especial.” São Paulo: Saraiva, 2001, v. 2.

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Fernandes, Antonio Scarance. “Processo penal constitucional.” 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

Mirabete, Julio Fabbrini. “Código de processo penal interpretado.” 7. ed. São Paulo: Atlas, 1999.

Novais, César Danilo Ribeiro de. “Cadernos do Júri: Textos sobre a reforma do rito do Júri.” Mato Grosso: Entrelinhas, 2009.

Nucci, Guilherme de Souza. “Júri: Princípios Constitucionais.” São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999.

Távora, Nestor, e Antonni, Romar. “Notas de Atualização do Livro Curso de Direito Processual Penal.” Salvador: JusPodivm, 2008.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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