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ArtigosPerspectivas dos Smart Contracts sob a ótica da função social dos contratos no Direito brasileiro

Na sociedade contemporânea, os negócios jurídicos estão continuamente sujeitos aos efeitos das inovações tecnológicas. Em resposta às demandas econômicas dos indivíduos, os métodos comerciais convencionais estão sendo gradualmente substituídos por transações eletrônicas, que estão se tornando cada vez mais sofisticadas. O Direito não pode permanecer indiferente diante de tantas mudanças sociais e econômicas. Consequentemente, surgem no sistema jurídico brasileiro diversos desafios, muitos deles complexos e sem precedentes na história das sociedades.

Nesse contexto, ao considerar a interseção entre tecnologia, avanço dos métodos comerciais e implicações legais, ressalta-se a ascensão dos smart contracts no Brasil. Esses contratos inteligentes representam uma inovação contratual que promove significativas mudanças na maneira como os contratos são estabelecidos e, principalmente, na execução das obrigações acordadas. Esses contratos tornam-se relevantes no mercado comercial, especialmente com o advento da tecnologia blockchain, que viabiliza o armazenamento dos códigos computacionais subjacentes aos smart contracts em uma cadeia de blocos. A implementação desses contratos inteligentes na tecnologia blockchain suscita interesse jurídico e demanda a atenção dos pesquisadores, pois levanta várias questões quanto à sua conformidade com o sistema normativo brasileiro. Isso inclui a interpretação judicial de cláusulas estabelecidas por meio de códigos computacionais, a eficácia das decisões judiciais na execução desses códigos, a proteção de dados pessoais inseridos na blockchain, a possibilidade de erros de programação causando prejuízos às partes, entre outros aspectos.

Em termos simples, trata-se de um programa de computador escrito em uma linguagem compreensível por outra máquina ou computador, que é executado automaticamente quando uma determinada condição estabelecida no código é cumprida, sem a necessidade de intervenção de terceiros. Os smart contracts seguem a lógica de programação “se x, então y”, o que significa que, se uma certa condição for atendida, uma determinada ação será executada em resposta. Um exemplo claro de smart contract é o funcionamento de máquinas automáticas de venda de refrigerantes: se o usuário inserir o valor x na máquina, receberá o produto y. Ou seja, ao cumprir a condição estabelecida pelo contrato (preço), que é interpretada pela máquina em códigos computacionais, o usuário recebe a contraprestação (produto).

Os smart contracts podem seguir padrões, semelhantes a contratos tradicionais, para que as partes possam escolher o modelo que melhor se adapte ao negócio em questão. Por exemplo, podem ser utilizados em transações como troca de imóveis, compra e venda de veículos, pagamentos de seguros, entre outros. Por meio dos smart contracts, a empresa pode impor e executar automaticamente as obrigações das partes assim que as condições do contrato forem atendidas. Assim como um contrato inteligente oferece a capacidade de programar um contrato, os pagamentos entre as partes podem ser realizados imediatamente após a realização de uma determinada condição, sem a necessidade de intermediários. Isso também pode ser acionado por meio de sinais de entrada provenientes de dispositivos da Internet das Coisas que são utilizados pelos segurados.

A ideia de smart contract não é recente. Nos Estados Unidos, desde os anos 1990, tem havido discussões sobre sua aplicação no ambiente comercial. No entanto, com o surgimento da tecnologia blockchain, que proporciona uma redução significativa nos custos de transação e simplifica contratos complexos, o conceito tem ganhado destaque entre as formas de contratação. A blockchain armazena e controla todas as transações feitas dentro da aplicação, as quais são agrupadas em blocos. Cada bloco referencia o anterior, formando assim uma “cadeia de blocos”, e cada nó na rede de computadores mantém uma cópia local de todos os blocos, garantindo a integridade dos dados, os quais não podem ser alterados ou apagados.

A característica principal da aplicação tecnológica é a descentralização. As operações realizadas na blockchain não dependem da intervenção de intermediários, já que a validação dessas transações é realizada por nós na rede, utilizando criptografia, o que proporciona maior confiança às partes envolvidas. No contexto do tratamento de códigos, a blockchain está associada aos smart contracts, o que intensifica sua implementação no mundo dos negócios. Os smart contracts, criados dentro de uma cadeia de blocos, são armazenados por meio de códigos e, quando as condições estabelecidas pelas partes são atendidas, são automaticamente executados.

As inovações contratuais frequentemente geram dúvidas na ciência jurídica, abordando questões técnicas e multidisciplinares que geralmente não são facilmente compreendidas pelo profissional do Direito. Nesse sentido, os smart contracts, devido à sua complexidade técnica, que está além da formação tradicional do jurista, têm suscitado diversas problemáticas jurídicas.

A proteção de dados torna-se ainda mais relevante, pois, ao contrário do que ocorre na assinatura de contratos tradicionais, em transações virtuais, o contratante deixa uma espécie de rastro, uma parcela de suas informações, que a outra parte pode acessar e utilizar, além da relação contratual estabelecida. Especialmente quando se trata de smart contracts em blockchain, onde a essência reside no fato de que os dados inseridos no sistema não podem ser apagados ou modificados posteriormente. Assim que são capturados pelos “oráculos” ou inseridos pelas partes contratantes, os dados, sejam pessoais ou não, ficam vinculados à tecnologia blockchain.

Para que possam ser reconhecidos dentro do sistema jurídico nacional, os smart contracts devem observar todas as normas gerais e princípios estabelecidos para a regulamentação dos negócios jurídicos, especialmente considerando a ausência de leis específicas para abordar suas peculiaridades. Os princípios ganham destaque nessa discussão, pois são essenciais para lidar com possíveis lacunas legislativas diante do cenário de constantes inovações tecnológicas e da dinamicidade das relações jurídicas comerciais, que muitas vezes não são acompanhadas pela atividade legislativa.

Na concepção clássica, o contrato tinha a função individual de atender aos interesses das partes, mantendo uma igualdade entre elas, limitada apenas pelos bons costumes e pela ordem pública. Sob o princípio do pacta sunt servanda, os contratos eram considerados intocáveis, regendo as relações contratuais durante o período do Código Civil de 1916, em consonância com a ideologia liberalista. Nesse contexto, o Estado não podia alterar os efeitos contratuais originalmente acordados pelas partes, exceto se houvesse vícios de consentimento detectados.

Com a promulgação do Código Civil em 2002, observa-se uma mudança significativa no foco das relações contratuais, pois a necessidade de reequilibrar o poder econômico entre as partes contratantes, afetado pelo crescimento do poder empresarial, levou a uma maior intervenção do Estado em detrimento da liberdade e autonomia da vontade. Em outras palavras, houve uma redução do papel da vontade individual na negociação dos contratos em favor da valorização da pessoa humana, incluindo os seus interesses tanto patrimoniais quanto existenciais.

Também é possível, em nome do princípio da função social do contrato, evitar a inclusão de cláusulas que injustificadamente prejudiquem terceiros ou até mesmo proibir a contratação de certos objetos, em prol do interesse coletivo predominante. É importante notar que não há uma definição absoluta para o princípio da função social dos contratos.

Primeiramente, o conceito de smart contract em si se opõe ao conteúdo normativo do princípio da função social dos contratos. Por ser autoexecutável, obrigatório e capaz de excluir qualquer interferência externa, tecnicamente não seria viável restringir os interesses privados das partes em prol dos interesses sociais, nem modular os efeitos gerados pelos termos do contrato. Isso ocorre porque, uma vez celebrado, o contrato automaticamente produzirá seus efeitos, sem possibilidade de reversão pelos mesmos termos da avença.

Não seria viável buscar uma ordem judicial para modificar ou rescindir um contrato celebrado em blockchain. Por um lado, a tecnologia é especificamente projetada para impedir a reversibilidade dos comandos programados. Por outro lado, uma decisão judicial, conforme concebida atualmente, não teria capacidade para restringir um código computacional autoexecutável, que é a base dos smart contracts desenvolvidos nessa tecnologia.

Ainda, quanto à ineficácia de decisões judiciais diante dos smart contracts, é importante lembrar que a tecnologia blockchain, que visa proporcionar maior confiabilidade e segurança às partes contratantes, é projetada de modo a impedir que fatores externos alterem a lógica contratual estabelecida inicialmente. Portanto, em geral, uma ordem judicial não poderia modificar nenhum dos termos contratuais. Adicionalmente, é importante ressaltar que essa situação de incerteza jurídica se intensifica consideravelmente quando se trata de relações de consumo, pois muitas garantias concedidas aos consumidores tendem a desaparecer durante a execução dos smart contracts.

Em resumo, os contratos inteligentes são criados por meio de códigos computacionais, cuja execução é automatizada após a implementação da condição estabelecida pelas partes. Entre as características dos smart contracts estão: autoexecução, autoaplicabilidade ou obrigatoriedade, pois nada pode impedir sua efetivação; descentralização e independência, já que não requerem a intermediação de terceiros no negócio, entre outras.

As numerosas questões técnicas e multidisciplinares envolvendo os smart contracts dificultam, principalmente, a compreensão das implicações jurídicas pelos profissionais do Direito. Além disso, a situação de incerteza jurídica é agravada pela dinâmica das inovações tecnológicas, que não são acompanhadas adequadamente pelo Poder Legislativo brasileiro, resultando na ausência de normativas específicas para lidar com os conflitos jurídicos inéditos decorrentes da aplicação dos smart contracts. Nesse contexto, percebe-se que o princípio da função social dos contratos, consagrado no art. 421 do Código Civil de 2002, visa proteger os interesses coletivos no âmbito das relações privadas. Os contratos, que anteriormente visavam apenas interesses individuais, passam a desempenhar um papel coletivo, com a restrição da autonomia da vontade das partes em favor do valor da dignidade humana. É importante compreender que o contrato, elaborado e executado dentro da sociedade, gera impactos além das partes envolvidas e, portanto, deve levá-las em consideração.

Entretanto, ao analisar os smart contracts, observa-se que as garantias proporcionadas pelo princípio da função social dos contratos são ignoradas. Mesmo diante de flagrante violação legal e prejuízo à coletividade, uma decisão judicial não pode impedir a execução de um smart contract, uma vez que, assim que a condição estabelecida pelas partes for cumprida, o contrato é automaticamente implementado. A tecnologia blockchain, onde os termos do contrato são estabelecidos, deve assegurar que nenhuma influência externa possa interferir na execução do contrato.

Assim, compreende-se que a adoção dos smart contracts no Brasil enfrenta desafios decorrentes do princípio da função social dos contratos, o que demanda uma análise cuidadosa por parte dos especialistas em direito. Isso ocorre porque os smart contracts representam um modelo contratual presente na sociedade contemporânea e que não pode ser ignorado pelo Estado, especialmente em um contexto globalizado, onde a tecnologia transcende fronteiras territoriais instantaneamente.

 

 

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