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ArtigosA importância do julgamento da ADPF 1.107 na prevenção da revitimização de sobreviventes de violência sexual

No nosso sistema legal, existem várias leis destinadas a proteger as vítimas de crimes. Um exemplo evidente disso é que, quando alguém comete qualquer infração penal, essa pessoa deve cumprir uma pena correspondente e responder pelos danos causados. No entanto, em algumas situações, essas leis não são observadas e, frequentemente, as autoridades são negligentes e não se preocupam em seguir os parâmetros legais.

É crucial dar voz às vítimas de crimes de violência sexual e, além disso, é essencial mostrar-lhes que estão protegidas pela lei e pelo Estado, e que as autoridades competentes se preocupam com sua vida e integridade. Além disso, é fundamental que o Estado funcione como uma rede de apoio para as vítimas, em vez de ser a causa de mais sofrimento. As leis desempenham um papel crucial, mas para garantir um sistema judicial protetor, é necessário que todas as autoridades demonstrem respeito e apoio desde o início da investigação criminal para aqueles que buscam ajuda. Infelizmente, não é incomum que as vítimas sejam tratadas de forma degradante desde o início do processo penal, o que torna a situação ainda mais dolorosa e complicada para elas.

No dia 22 de novembro de 2021, foi sancionada a Lei 14.245/2021, que promoveu alterações nos Decretos de nº 2.848/1940 (Código Penal) e 3.689/1941 (Código de Processo Penal), conforme o artigo 1º da referida Lei, disponibilizada no site do Planalto. Esta lei, originada do Projeto de Lei nº 5.096/2020, proposto pela deputada Lídice de Mata, foi inspirada no caso Mariana Ferrer. O objetivo da lei é assegurar uma proteção mais eficaz às vítimas de violência sexual durante as audiências de instrução e julgamento. A proposta da lei busca evitar que mulheres vítimas de violência sexual sejam expostas e tenham sua integridade psicológica violada durante o procedimento oficial da audiência.

É importante destacar inicialmente o conceito e o processo de revitimização ou vitimização secundária. Podemos entender a violência sexual como a vitimização primária, ou seja, o próprio crime, conforme explicado por Cezar Roberto Bitencourt:

 

A violência sexual da vítima de estupro pode ser entendida como vitimização primária, a qual, em tese, compete ao Estado proteger, que, no entanto, confronta-se com o direito irrenunciável da vítima de autorizar ou não o Estado a instaurar a persecução penal, via poder repressor estatal.

Dessa forma, ao estabelecer que a vitimização primária representa o primeiro sofrimento enfrentado pela vítima, podemos inferir que a revitimização ou vitimização secundária consiste no sofrimento contínuo e repetitivo após o término da violência inicial, neste caso, a violência sexual.

Assim sendo, podemos afirmar que a Revitimização é o fenômeno que envolve a repetição sistemática da violência. Conforme descrito por Rachel Manzanares e outros, também é possível chamá-la de violência institucional ou vitimização secundária. Nesse contexto, refere-se a uma situação em que a vítima continua a sofrer as consequências da violência mesmo após o término da agressão inicial. O termo “institucional” é empregado porque as instituições que deveriam proteger a vítima muitas vezes a prejudicam com procedimentos burocráticos intermináveis, tornando o processo de encaminhamento ou acolhimento doloroso e reavivando memórias traumáticas. Já o termo “secundária” indica que não é o agressor original que perpetua a violência contra a vítima, mas sim as circunstâncias que surgem após a agressão inicial, fazendo com que a vítima reviva o trauma.

Conforme observado, a revitimização acontece quando o Estado falha em cumprir seu papel de proteger as vítimas, conforme expressamente previsto na Constituição Federal, em seu artigo 5º, tanto em seu caput quanto no inciso III.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

É verdade que a violência sexual se encaixa perfeitamente nesses conceitos apresentados. Além de todos os aspectos já discutidos neste artigo, a violência sexual constitui um tratamento desumano e degradante. A partir disso, pode-se concluir que, conforme previsto na Constituição Federal, é responsabilidade do Estado garantir a proteção de seus cidadãos, sem submetê-los a tais formas de tratamento. No entanto, é claro que a revitimização ocorre quando o Estado falha em cumprir seu papel de proteger os direitos de cada indivíduo, fazendo com que o sofrimento da vítima seja revivido. Isso pode acontecer em qualquer momento durante o processo, seja durante a audiência, no momento da denúncia na delegacia ou em qualquer outra fase.

O Supremo Tribunal Federal, na última quinta-feira (07/03/2024), iniciou o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 1.107, que busca evitar a desqualificação de mulheres vítimas de crimes sexuais durante audiências judiciais e investigações policiais. A Procuradora-Geral da República ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental contra a conduta do Estado ou do Poder Público no enfrentamento da violência contra a mulher, especialmente a prática de permitir e validar, em processos de investigação e julgamento de crimes contra a dignidade sexual, questionamentos sobre a vida sexual anterior e o estilo de vida da vítima. Alega-se que essa conduta contraria princípios constitucionais fundamentais, como a dignidade humana, a liberdade sexual, a igualdade de gênero, o devido processo legal e os objetivos estabelecidos no artigo 3º da Constituição da República.

Na referida arguição, a argumentação defende que o objetivo [dessa arguição] é buscar uma decisão do Supremo Tribunal Federal que proíba explicitamente tanto a prática de desqualificação da vítima, geralmente promovida pela defesa do acusado do crime, quanto a consideração ou ratificação judicial de alegações nesse sentido, que possam influenciar o julgamento respectivo para a absolvição do acusado ou, de alguma forma, beneficiá-lo na aplicação da pena.

Alega-se também uma omissão inconstitucional, identificada como uma falha em agir ou agir de maneira ineficaz e insuficiente por parte do poder público, considerando seu dever de proteger as mulheres contra todas as formas de violência, ao permitir que mulheres vítimas de estupro sejam interrogadas e tenham sua experiência sexual passada exposta durante o julgamento do crime; e é uma prática inconstitucional (comissiva), na qual o aparato jurisdicional reconhece como válido ou reproduz, ainda que de forma velada, um discurso de culpabilização da vítima de estupro.

Assim, o cerne da ADPF reside na prática de desqualificação das mulheres vítimas durante audiências de instrução e julgamento de crimes contra a dignidade sexual, por meio da exposição de elementos não relacionados à violência sofrida – como sua história pessoal, conduta social e sexual, hábitos ou vestimentas -, além da omissão do poder público em seu dever de proteção da mulher no contexto do processo criminal. Busca-se invalidar a prática inconstitucional, exemplificada por casos amplamente divulgados (embora não limitada a estes), e declarar a omissão e a responsabilidade dos órgãos encarregados do processo criminal em coibi-la imediatamente, e em responsabilizar aqueles que infligem violência psicológica à vítima durante o curso do processo. Tais ações representam condutas do poder público passíveis de contestação por meio da ADPF.

Para a Procuradoria-Geral da República (PGR), a ADPF fundamenta-se na crescente evidência da violência de gênero, destacada nos noticiários, repletos de relatos sobre crimes de violência sexual e no decorrer dos processos correspondentes. O discurso de desqualificação da vítima, ao expor e analisar sua conduta e estilo de vida, reflete uma concepção odiosa de que existe um perfil ideal de vítima de crimes sexuais, como se fosse possível distinguir entre mulheres dignas ou não de proteção legal contra a violência que sofreram. Essa abordagem, de forma velada, ressuscita a noção da “mulher honesta”, uma ideia há muito superada no direito penal, mas que outrora constituía um elemento subjetivo nos crimes de estupro para avaliar o comportamento do agressor.

Além disso, é prudente destacar o emblemático caso de Santa Catarina, conhecido como caso Mariana Ferrer, que ganhou repercussão nacional. Durante o julgamento, o advogado de defesa do acusado, de maneira intimidatória e com claro propósito de desacreditar a denúncia, exibiu fotos da vítima que ele considerou “inadequadas” – em poses que ele descreveu como “ginecológicas” – sem qualquer relevância para o caso. Ele afirmou que o processo era um “showzinho” da vítima, que mentia sobre sua virgindade, enquanto ela clamava por respeito, sem sucesso. O réu foi absolvido (…). Essa narrativa de desqualificação da vítima é lamentavelmente comum, pois encontra espaço para prosperar em um ambiente que deveria ser inquestionavelmente seguro, mediado pelo poder público.

Portanto, a ADPF solicita, em seu mérito, que se julgue procedente o pedido, declarando a inconstitucionalidade da prática de desqualificar mulheres vítimas de violência sexual durante a instrução e o julgamento de crimes dessa natureza.

Diante de tudo o que foi apresentado, podemos inferir que o número de pessoas que sofrem violência sexual no Brasil continua a aumentar a cada dia e ano. Apesar da existência de leis que buscam regulamentar a proteção dessas vítimas, o Estado tem falhado em sua eficácia. Diante desse cenário, os legisladores reconhecem a necessidade de promulgar novas leis com punições mais severas, na tentativa de mitigar esse problema.

É inegável que, embora o caso Mariana Ferrer tenha ganhado ampla notoriedade e despertado grande atenção social, não podemos ignorar que inúmeras mulheres e homens ainda enfrentam diariamente essa terrível realidade. Tanto o Estado quanto as autoridades competentes têm plena consciência desse fato. Diante disso, ressalta-se a urgência e a importância de uma decisão favorável e ágil no julgamento da ADPF, visando a redução do número de revitimizações, que consistem no sofrimento contínuo da vítima, como já mencionado.

No entanto, é possível concluir que, embora as leis desempenhem um papel crucial na regulamentação da defesa, proteção e garantia dos direitos de todos, isso por si só não é suficiente. É essencial que aqueles responsáveis por lidar com casos como esses estejam verdadeiramente preparados para tratar pessoas que foram vítimas de violência sexual. É importante reconhecer que estar diante dessas situações já é extremamente doloroso para as vítimas, que estão ali para relatar um momento traumático de suas vidas, algo que jamais desejariam reviver. Portanto, é fundamental que esse processo seja conduzido de maneira a minimizar ao máximo o sofrimento das vítimas, preferencialmente por equipes especializadas, compostas por profissionais sensíveis, especialmente mulheres, que saibam lidar com esses casos de forma a não coagir as vítimas ou causar-lhes ainda mais dor.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ALVES, Schirlei. Caso Mariana Ferrer: conheça os detalhes do processo que absolveu o empresário. 2020. Disponível: https://ndmais.com.br/seguranca/policia/exclusivo-os-detalhes-do-processo-queabsolveu-acusado-de-estuprar-mariana-ferrer/

ALVES, Schirlei. Julgamento de influencer Mariana Ferrer termina com tese inédita de “estupro culposo” e advogado humilhando jovem. 2020. Disponível em: https://theintercept.com/2020/11/03/influencer-mariana-ferrer-estupro-culposo/

AVELAR, Daniel; FUCZ, Rodrigo; SAMPAIO, Denis. Reflexos no júri da Lei Mariana Ferrer (Lei 14.245/2021). 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-nov27/tribunal-juri-reflexos-juri-lei-mariana-ferrer-lei-142452021#_ftnref1

BRASIL. Lei nº 14.245, de 22 de novembro de 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14245.htm

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 15ª ed. Saraiva Jur, 2020.

FERREIRA, Gardênia. Cultura do Estupro e Culpabilidade da Vítima: A Falha do Direito na Proteção da Mulher. 2021. 23 folhas. Direito Penal. UNIFIG – GuanambiBA, 2021.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 20ª ed. Forense.

PEREIRA, Igor. Lei Mariana Ferrer e o Direito Penal do Inimigo. 2021. Disponível em:https://www.migalhas.com.br/coluna/direitos-fundamentais/355601/lei-marianaferrer-e-o-direito-penal-do-inimigo

 

 

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