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ArtigosNormas de Vestuário no Ambiente Jurídico: Uma Análise da IN 06/24 do STJ

Em uma sociedade capitalista de consumo, a maneira como nos vestimos é uma forma de expressar quem somos ou quem desejamos ser, transmitindo símbolos e sinais que comunicam nossa identidade aos outros. Vestir-se transcende simplesmente cobrir o corpo e passa a ser uma manifestação dos nossos desejos e da nossa identidade. A forma como cada pessoa escolhe se vestir é uma expressão direta e reflexiva de sua identidade, e é crucial respeitá-la. A vestimenta não é apenas uma manifestação pessoal, mas também desempenha um papel vital na cultura, moldando a percepção externa e impactando os comportamentos. Ao impor códigos de vestimenta em contextos forenses, corre-se o risco de suprimir aspectos essenciais da individualidade, como a personalidade e a identidade. Em todos os tribunais do país, são estabelecidas e rigorosamente monitoradas regras rígidas sobre vestimenta, as quais são exibidas em todas as entradas dos fóruns.

A influência da vestimenta é tão significativa que certas roupas transmitem mensagens sobre nossa identidade e opiniões. Além disso, ao longo da história, foram forjados estereótipos em torno de certas indumentárias, o que reforça crenças relacionadas ao gênero, raça e, especialmente, classe social das pessoas que as usam.

À primeira vista, moda e Direito podem parecer áreas isoladas, mas ambas expressam conceitos e percepções que só podem ser plenamente compreendidos quando examinados em conjunto. Por exemplo, a representação dos trajes formais e sua associação com influência e poder. Geralmente, a sociedade associa vestimentas como ternos, tailleurs e roupas sociais a pessoas com alto poder aquisitivo ou ocupantes de cargos de grande autoridade, vistos como privilegiados. A simbologia associada a um estilo específico de vestimenta, especialmente dentro do contexto jurídico, transmite a noção de quem detém o conhecimento e, através das roupas, indica quem ocupa uma posição superior na hierarquia jurídica.

No dia 12 de março do presente ano, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) divulgou novas diretrizes de vestimenta, proibindo o uso de tops curtos, blusas que deixem a barriga à mostra e regatas em suas instalações. Além disso, continua proibido o uso de shorts, mini saias e leggings. A instrução normativa 6/24, assinada pela presidente do tribunal, ministra Maria Thereza de Assis Moura, se aplica a todos os funcionários, estagiários, público em geral e visitantes que frequentam as dependências do STJ. Também é vedada a entrada de pessoas vestindo chinelos, bonés, roupas de ginástica, de banho ou fantasias. Vejamos:

Art. 3° O acesso às dependências do Tribunal será vedado às pessoas que estejam usando:

I – peças sumárias, tais como shorts e suas variações, bermuda, miniblusa, minissaia ou trajes de banho e de ginástica, legging, montaria, croppeds ou blusas que exponham a barriga, camiseta sem manga e fantasias;

II – chinelo (com tira em formato de Y que passa entre o primeiro e segundo dedo do pé e ao redor de ambos os lados do pé ou com uma tira ao redor de todos os dedos), exceto em caso de lesão no pé ou recomendação médica;

III – bonés, à exceção do corpo funcional da polícia judicial no uso do uniforme operacional.

A norma anterior, datada de 2011, estabelecia restrições específicas de vestimenta com base no sexo. Para homens, era proibido o uso de shorts, bermudas, camisetas sem manga, trajes de banho e roupas de ginástica. No entanto, as regatas não estavam vetadas para mulheres, que eram aconselhadas a evitar shorts, bermudas, blusas curtas, mini saias, trajes de banho e roupas de ginástica.

A nova regulamentação também aborda a vestimenta adequada para as salas de julgamento. Nesse contexto, todos os presentes devem vestir-se de acordo com a formalidade e o protocolo jurídico. Em contraste com o texto de 2011, que distinguia as vestimentas permitidas para “sexo masculino” e “sexo feminino”, a nova norma do STJ agora divide os trajes autorizados com base na identificação de gênero de cada indivíduo. Para aqueles que não se identificam com nenhum gênero específico, poderão escolher entre as diretrizes disponíveis. Ficam dispensadas da obrigatoriedade as pessoas idosas e os estudantes em visita institucional, assim como os povos indígenas. Senão vejamos:

Art. 4º O corpo funcional do Tribunal, grupo de estudantes, público em geral e visitantes, quando presentes nas salas de sessão de julgamento do Plenário, Corte Especial, Seções, Turmas e em seus ambientes de acesso, deverão trajar-se segundo a formalidade e a liturgia jurídica.

§1° Nos ambientes elencados no caput, os trajes permitidos são os seguintes:

I – para as pessoas que se identificam com o gênero masculino: terno (calça social e paletó ou blazer), camisa social, gravata e sapato social;

II – para as pessoas que se identificam com o gênero feminino: vestido ou blusa com calça ou saia, todos de natureza social, além de calçado social;

III – para as pessoas que não se identificam com nenhum dos gêneros: trajes indicados nos incisos I e II à sua escolha.

Em comunicado, o STJ afirmou que a alteração foi feita para tornar as regras “mais inclusivas, em conformidade com o compromisso do tribunal com a promoção da cidadania e a inclusão de todas as pessoas.” O tribunal também esclareceu que ninguém é impedido de entrar na portaria devido à vestimenta. “A atualização não modificou as normas sobre vestimenta e não há funcionários ou visitantes sendo impedidos de entrar nas portarias”, declarou.

Ainda nesse sentido, destaca-se que, a Lei nº. 8.906/94 – Estatuto da Advocacia, em seu art. 58, XI, atribui aos Conselhos Seccionais a competência exclusiva para estabelecer os critérios referentes aos trajes dos advogados. Entretanto, o art. 58, XI, do Estatuto da Advocacia, apresenta uma disposição genérica sobre a vestimenta dos profissionais do Direito e mantém o termo “advogados”, o que evidencia uma discrepância de gênero, considerando que, atualmente, as advogadas constituem a maioria no Brasil.

Sobre a recente regulamentação do Supremo Tribunal de Justiça, é crucial analisar sua abrangência e os possíveis efeitos que poderá gerar. O acesso à justiça é uma das questões mais debatidas no campo jurídico, particularmente no que diz respeito à capacidade do jurisdicionado de arcar com as despesas processuais. No entanto, pouco se discute sobre o acesso aos próprios direitos, que permanecem desconhecidos para uma parte significativa da população, incluindo questões relacionadas à linguagem utilizada nos processos, e inclusive da própria acessibilidade física aos tribunais.

A questão da vestimenta também é debatida quando se trata da situação de pobreza de uma pessoa que comparece ao tribunal. Um exemplo notável é o julgamento do Procedimento de Controle Normativo n. 200910000001233 pelo conselheiro ministro Orestes Dalazen, instaurado pelo advogado Alex André Smaniotto. Este caso é relevante, pois não envolve a discussão sobre um indivíduo específico, mas sim sobre a norma que, segundo o advogado, teria impedido uma pessoa de baixa renda de entrar no tribunal vestindo bermuda. O juiz, em seu relatório, destaca tanto o ponto de vista do advogado, para quem a norma representa um obstáculo ao acesso à justiça para grande parte da população de baixa renda, quanto o ponto de vista do juiz diretor do fórum.

Há diversas polêmicas em torno da vestimenta: desde o juiz que interrompeu uma audiência porque uma das partes estava de chinelo; até um desembargador que se recusou a ouvir uma advogada por considerar sua roupa inadequada; ou ainda uma advogada impedida de entrar em um fórum no Tocantins devido ao vestido que estava usando. Considera-se que esta é uma discussão sensível que requer reflexão, pois, por um lado, existe a necessidade de respeitar o decoro, a dignidade e a seriedade do sistema judicial, o que inclui a forma como os jurisdicionados se vestem ao entrar em um tribunal. Por outro lado, há também o direito fundamental à não discriminação, especialmente no que diz respeito aos jurisdicionados que não têm condições financeiras para adquirir determinado tipo de vestimenta.

Acredita-se que esse dilema deve ser abordado com base no bom senso e na razoabilidade. Em situações delicadas como essa, qualquer posição inflexível, seja para proibir totalmente ou para permitir sem restrições, pode ser considerada inadequada e intolerante. A permissividade completa poderia resultar em situações absurdas, como permitir que um homem entre nos tribunais usando apenas sunga, ou uma mulher com trajes de banho mínimos, o que claramente não seria apropriado para o ambiente austero do local. Por outro lado, uma proibição absoluta e rígida de certas vestimentas poderia levar a consequências prejudiciais e discriminatórias, como negar acesso à justiça a uma pessoa pobre e desfavorecida que só possa comparecer aos tribunais usando chinelos ou roupas desgastadas. É necessário encontrar um equilíbrio ao lidar com essa questão complexa que vai além das normas sociais.

Ao longo da história, a humanidade passou por várias transformações, especialmente em termos comportamentais. Alguns eventos marcantes gradualmente moldaram a mentalidade contemporânea por meio de acontecimentos e mudanças radicais no pensamento anterior. Atualmente, o debate sobre a obrigatoriedade do uso de determinados trajes para acesso ao Poder Judiciário reflete a falta de consenso, com uma disputa entre a tradição conservadora e a necessidade de inovação decorrente do contexto atual. Basta olhar as notícias recentes para perceber que as audiências não são apenas sobre a exposição de fatos, conhecimento técnico-jurídico e habilidade argumentativa. O aspecto estético se revela como um elemento crucial no ambiente jurídico, sendo exigido dos advogados e das partes, em consonância com dois princípios orientadores da vestimenta em ambientes forenses: decoro e asseio.

É essencial compreender que uma vestimenta não é apenas uma “cobertura”, mas também um indicador de nossa identidade ou aspirações. Além disso, um traje apropriado sugere implicitamente que a pessoa está consciente do contexto em que está inserida e, além disso, o respeita. Embora seja verdade que, como diz o ditado popular, “a aparência não é tudo”, é crucial reconhecer que a forma como nos vestimos contribui para a construção da imagem de cada indivíduo – e comunica mensagens sobre ele. É altamente benéfico adaptar o traje conforme o ambiente em que nos encontramos, seja ele familiar, empresarial ou jurídico. Essa influência do ambiente não precisa ser vista de forma negativa, pois é sempre possível manter as referências, crenças e valores que fazem parte da nossa personalidade. É importante identificar o que desejamos comunicar por meio da nossa imagem e buscar opções que atendam a esse requisito sem perder nossa essência.

No ambiente jurídico, a vestimenta desempenha um papel relevante na imagem do profissional e ainda valoriza-se muito a formalidade. No entanto, é crucial ponderar sobre o limite entre o que pode ser considerado formalidade e o que pode ser interpretado como elitismo. Por muito tempo, o judiciário foi acessível apenas a poucas pessoas, criando uma disparidade no acesso à justiça que discriminava entre homens brancos proprietários e pessoas negras, pobres e mulheres. É fundamental que tenhamos discernimento para equilibrar o que é decoro e o que é uma forma velada de exclusão.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ALMEIDA, Normanha Ribeiro de Frederico. A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da Justiça no Brasil. Tese em Ciência Política. USP-SP. 2010

BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilos de vida. In: ORTIZ, Renato (org.)Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática, 1983

FONSECA, Ricardo Marcelo. Vias da modernização jurídica brasileira: a cultura jurídica e os perfis dos juristas brasileiros do século XIX. In: Revista Brasileira de Estudos Políticos. v. 98, 2008.

FULLIN, Carmen Silvia. Acesso à Justiça: a construção de um problema em mutação. In: Manual de Sociologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 2013, 219-236.

RIO GRANDE DO NORTE. Ordem dos Advogados do Brasil. Resolução n° 6, de 17 de agosto de 2018. Regulamenta o uso das vestes pelos advogados e advogadas no desempenho de suas atividades profissionais no Estado do Rio Grande do Norte. Disponível em: https://www.oabrn.org.br/arquivos/2018/resolucoes/Resolucao-006-2018-traje-advogados-e-advogadas-alterada.pdf. Acesso em: 15 março 2024.

SALGADO, Gisele Mascarelli. Chique no judiciário: entre ritos e vestimentas pra acessar o judiciário. Anais. VI Enadir -GT 18- Profissões jurídicas, rituais judiciários, sistema de justiça e pesquisa empírica em direito em diálogo com a antropologia, 2019.

SILVA, Ana Carolina. Diversidade jurídica da moda pela perspectiva dos substratos da dignidade da pessoa humana. Orientador: Natália de Souza Lisbôa. 2020. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, 2020.

 

 

 

 

 

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