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ArtigosO afeto e a posse de estado de filho no ordenamento jurídico brasileiro

23/12/2022by admin0

Por 
Marcus Vinicius Alencar Barros
Nadejda Silva Ferres

No Brasil é possível observarmos notáveis avanços na doutrina,  jurisprudência e também, de forma mais limitada, na legislação no que diz respeito à filiação socioafetiva.

Aos poucos, a família passou de um grupo estabelecido pelo nascimento, para ser um grupo onde as pessoas se integram a partir do afeto que existem entre eles. A concepção da filiação na sociedade do século passado consistia na opinião que os pais eram somente os genitores e, atualmente tal concepção foi modificada.

Essa modificação reflete no modo como a sociedade passou a enxergar a função  dos pais e mães. Mudou-se o entendimento que os pais são somente os genitores, aqueles que contribuíram com seu material genético para que o filho pudesse ser concebido. Os pais, na verdade, são os responsáveis por transmitir afeto, amor, educação, além do psicológico e financeiro da criança.

O pensamento do que realmente significa a filiação, o que é ser pai de alguém, transcende a verdade biológica. É explicado no ato de compartilhar a vida, cuidar dos filhos e transformá-los em bons cidadãos. A filiação é exercida quando o filho se encontra enfermo e o pai não desgruda um instante até ver a melhora dele, é  ter carinho e afeto durante a vida toda do filho. Esse é o significado de filiação que passou a ser aceito pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Essa nova forma de vislumbrar a família, só teve maior repercussão jurídica com a chegada da Constituição Federal de 1988. Foi a partir da promulgação da Carta Magna que o anseio da sociedade brasileira por normas que tratassem da filiação foi atendido e, posteriormente, veio o Estatuto da Criança e do adolescente e        também o Código Civil de 2002 trazendo a ratificação acerca do entendimento da filiação, em especial aquela que prima pela afetividade.

Esse é o mesmo entendimento que o autor Rolf Madaleno (2000, p. 8.) possui acerca do assunto:

Os filhos são realmente conquistados pelo coração, obra de uma relação de afeto construída a cada dia, em ambiente de sólida e transparente demonstração de amor a pessoa gerada indiferente origem genética, pois importa ter vindo ao mundo para ser acolhida como filho de adoção por afeição. Afeto para conferir tráfego de duas vias a realização e a felicidade da pessoa. Representa dividir conversas, repartir carinho, conquistas, esperanças e preocupações; mostrar caminhos, receber e fornecer informação. Significa iluminar com a chama do afeto que sempre aqueceu o coração de pais e filhos socioafetivos, o espaço reservado por Deus na alma e nos desígnios de cada mortal, de acolher como filho aquele que foi gerado dentro do seu coração.

Assim, a filiação ultrapassa as barreiras da origem consanguínea e coloca o afeto como seu principal elemento.

A Constituição Federal de 1988 menciona o afeto como a base das relações familiares, possuindo assim verdadeiro valor jurídico. É no princípio jurídico da afetividade que a atual família firma suas raízes.

O autor Paulo Lôbo (2011, p. 71) analisa o princípio da afetividade na Constituição Federal de modo ímpar:

O princípio da afetividade está implícito na Constituição. Encontram-se na Constituição fundamentos essenciais do princípio da afetividade, constitutivos dessa aguda evolução social da família brasileira, além dos já referidos:

  1. todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227,§ 6º);
  2. a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, § 5º e 6º);
  3. a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, 4º);
  4. a convivência familiar (e não a origem biológica) é prioridade absoluta assegurada à criança e ao adolescente (art. 227).

 

Ademais, Paulo Lôbo (apud FUJITA, 2011, p. 106) afirma que “o afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar, e não do sangue”.

A posse de estado de filho para ser constituída é necessária que exista uma relação de afeto e, além disso, que exista a reciprocidade na relação de pai e filho aos olhos da sociedade.

O tratamento dispensado na posse de estado de filho é delineado a partir do momento que o pai age como se fosse pai e o filho age como se fosse filho, é a partir disso que a relação é configurada.

O autor José Bernardo Ramos Boeira (1999, p. 60) demonstra sua posição sobre o tema nas seguintes palavras:

A posse de estado de filho é uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai.

O ordenamento jurídico brasileiro não colocou de forma expressa como se dá a posse de estado de filho. Isso ocasiona um complicador quando nos deparamos  no cotidiano com a situação de posse de estado de filho. Necessário é a sensibilidade do julgador para perceber de forma fidedigna tal relação.

Consoante é o posicionamento da autora Maria Berenice Dias (2010, p. 363) sobre a posse de estado de filho:

Infelizmente, o sistema jurídico não contempla, de modo expresso, a noção de posse de estado de filho, expressão forte e real do nascimento psicológico, a caracterizar a filiação afetiva. A noção de posse de estado de filho não se estabelece com o nascimento, mas num ato de vontade, que se sedimenta no terreno da afetividade, colocando em xeque tanto a verdade jurídica, quanto a certeza científica no estabelecimento da filiação. A filiação socioafetiva assenta-se no reconhecimento da posse de estado de filho: a crença da condição de filho fundada em laços de afeto. A posse de estado de filho é a expressão mais exuberante do parentesco psicológico, da filiação afetiva. A afeição tem valor jurídico. A maternidade e a paternidade biológica nada valem frente ao vínculo afetivo que se forma entre a criança e aquele que trata e cuida dela, lhe dá amor e participa de sua vida. Na medida em que se reconhece que a paternidade se constitui pelo fato, a posse do estado de filho pode entrar em conflito com a presunção pater est. E, no embate entre o fato e a lei, a presunção precisa ceder espaço ao afeto.

Ademais, para que a posse do estado de filho seja reconhecida, a doutrina utiliza três aspectos: Tractatus que diz respeito ao tratamento que o filho recebe dos pais e a forma como o filho trata os pais. Dessa forma, o tratamento se encontra coadunado a relação de afeto entre essas pessoas; Nomen ocorre quando a pessoa utiliza o nome de família dos pais e Fama que diz respeito à forma como o filho é reconhecido perante a sociedade e a família (LÔBO, 2012).

A autora Maria Helena Diniz (2010) coloca em suas palavras a importância da  identificação da posse de estado de filho. É uma situação de fato entre o filho e o possível pai, que pode ensejar em parentesco. Todavia, o uso do nome da família não é suficiente para que se estabeleça uma relação de parentesco entre pai e filho, sendo necessários outros meios de prova. É importante validar o tratamento de pai e filho perante a sociedade.

A visão do autor Roberto Senise Lisboa (2012), é que a posse do estado de filho necessita ter o reconhecimento judicial, com o intuito de ser concretizado no registro civil do filho. Não importando se o reconhecimento é voluntário ou forçado. Todavia, não deve preponderar sobre a certidão de nascimento. Com isso, percebemos que o autor entende ser necessária a confirmação do julgador de que em determinado caso exista de fato a posse de estado de filho e não só uma mera aparência.

Silvio Rodrigues (2008, p. 292), declara que a posse de estado de filho é composta pelo “[…] desfrute público, por parte, de alguém, daquela situação peculiar ao filho, tal o uso do nome familiar, o fato de ser tratado como filho pelos pretensos pais, aliado à persuasão geral de ser a pessoa, efetivamente filho”.

A posse de estado de filho tem como seu principal fundamento a forma como  a sociedade enxerga a relação afetiva das pessoas. Ser pai ou filho de alguém não é  algo que acontece de forma inesperada, para isso é necessário que ocorra demonstração paterno-filial e é preciso que elas sejam rotineiras, duradouras e sem amplos lapsos temporais do relacionamento.

É importante a existência de uma relação afetiva semelhante a uma família, que aparenta ser a interação de pai e filho. Por isso, é pertinente que os casos de posse de estado de filho sejam analisados com bastante atenção e cautela para que todos os liames sejam considerados. Julgar isso não é algo simplório porque as relações humanas são deveras complexas, cada caso possui suas peculiaridades.

É nesse ponto que o julgador precisa aprofundar o estudo sobre o tema. Dessa forma, é relevante possuir parâmetros legais mínimos preestabelecidos pela legislação, para que não tenham casos semelhantes com julgamentos contrários.

Com o intuito de garantir a posse do estado de filho o autor Jorge Shiguemitsu Fujita (2011, p. 145-146) fez uma sugestão de projeto de lei:

Art. 1º O caput do art. 1.601 do Código Civil passa a ter a seguinte redação: “Art. 1.601. Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, a menos que exista a posse de estado de filho. Essa ação é imprescritível.”

Art. 2º O art. 1.603 recebe o seguinte parágrafo único: Art. 1.603 […]

“Parágrafo único. A filiação poderá ser também provada pela posse de estado de filho.”

Art. 3º O art. 1.604 passa a ter a seguinte redação:

“Art. 1.604. Ninguém pode vindicar estado contrário o que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro, ou falsidade de registro, ou filiação socioafetiva decorrente da posse de estado de filho.”

Art. 4º O art. 1.605 passa a ter nova redação em seu caput, ficando revogado os seus incisos I e II. Fica incluído um parágrafo único:

“Art. 1.605. Na falta, defeito, erro, ou falsidade, do termo de nascimento, ou, então para declarar a filiação socioafetiva originária da posse de estado de filho, a prova poderá consistir em qualquer modo admissível em direito.

Parágrafo único: A posse de estado de filho deverá ser contínua, pacífica, pública e não duvidosa e se basear em uma reunião suficiente dos seguintes fatos: a) o que indivíduo seja tratado como filho por aqueles a quem considera seus pais; b) que estes estejam provendo sua criação, educação e sustento; c) que ele seja reconhecido como filho na sociedade e pela família; d) que ele apresente o nome daqueles de quem alega ser filho. Art. 5º Revogam-se as disposições em contrário.”

A família vem se modificando ao longo da história e na atualidade a construção de uma família independe do vínculo biológico. O afeto passou a ser algo marcante na sociedade contemporânea, a partir do momento que a filiação não é mais estabelecida somente pelos laços sanguíneos e, é o afeto que passou a unir os  pais aos filhos.

Portanto, o afeto desencadeou uma nova forma de estabelecimento da filiação, que é a filiação   socioafetiva. A filiação socioafetiva não é estabelecida somente entre o pai e filho, como também entre os outros parentes que compõem uma família, fazendo com que essa modificação na atual conjectura familiar, sofra incidência de forma ímpar na sociedade brasileira.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm >. Acesso em: 08 agosto 2022.

BOEIRA, José Bernardo Ramos. Investigação de paternidade: posse de Estado de filho. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, volume 5. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

FUJITA, Jorge Shiguemitsu. Filiação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011.

LOBO, Paulo. Direito Civil: famílias. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil: direito de família e sucessões. volume 5. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

MADALENO, Rolf. Novas perspectivas no direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.

RODRIGUES, Sílvio. Direito civil: direito de família. 6 volume. 28. ed. rev. e atual. por Francisco José Cahali. São Paulo: Saraiva, 2008.

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