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ArtigosMedicações de Alto Custo e Responsabilidade dos Planos de Saúde: Reflexões sobre o Caso REsp nº 2071955 e a Decisão do STJ

Os direitos fundamentais à saúde e à vida, assegurados pela Constituição, servem como bases fundamentais para outros direitos e são frequentemente invocados como argumentos em demandas judiciais para acesso a tratamentos médicos e obtenção de medicamentos ou substâncias. No entanto, os limites para a concessão de liminares ou para a decisão final do judiciário não estão claramente definidos, resultando em uma grande judicialização e, muitas vezes, tendo impactos negativos na saúde dos pacientes menos favorecidos que deveriam ser beneficiados.

Assim, diante do princípio da universalidade do tratamento estabelecido pela Constituição Federal Brasileira, o judiciário frequentemente enfrenta questões para as quais não possui expertise em relação ao fornecimento de medicamentos experimentais e medicamentos de alto custo. Embora esses medicamentos estejam incluídos no RENAME (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais), muitas vezes não são destinados ao tratamento da condição específica do requerente. Isso resulta em gastos excessivos devido à falta de planejamento do setor público e à falta de comunicação entre os sistemas de saúde e jurídico.

Em média, o orçamento destinado à saúde é de 136,25 bilhões de reais, enquanto o total de despesas executadas nessa área corresponde a 10,21 bilhões de reais. Apesar dos valores investidos serem significativos, a demanda por serviços de saúde é ainda maior. Provavelmente, esse montante seria suficiente para atender a grande parte ou quase toda a população, não fosse pela necessidade de medicamentos de alto custo para uma parcela significativa dela. Muitas pessoas dependem desses medicamentos específicos para manterem-se vivas, porém não têm condições financeiras para adquiri-los, razão pela qual recorrem ao judiciário. Sob o argumento incontestável de que os direitos sociais demandam recursos financeiros, a teoria da reserva do possível no direito à saúde tem ocupado um espaço considerável nos debates jurídicos.

O sistema começa a demonstrar sinais alarmantes de que pode perecer devido ao próprio remédio, vítima do excesso de ambição, da ausência de critérios e de diversos voluntarismos. Por um lado, observamos uma proliferação de decisões extravagantes ou emocionais, muitas vezes de natureza política, que impõem à Administração o ônus de custear tratamentos impraticáveis (seja pela inacessibilidade, seja pela falta de essencialidade). Além disso, há decisões que concedem proteção para o uso de medicamentos experimentais ou de eficácia questionável, muitas vezes associados a terapias alternativas. Por outro lado, não existe um critério claro para determinar qual entidade estatal – União, Estados ou Municípios – é responsável pela provisão de cada tipo de medicamento. Como resultado, os processos acabam envolvendo sobreposição de esforços e defesas, com diferentes entidades federativas se envolvendo e mobilizando uma grande quantidade de agentes públicos, incluindo procuradores e servidores administrativos. É desnecessário ressaltar que tudo isso acarreta em custos adicionais, imprevisibilidade e disfuncionalidade na prestação jurisdicional.

O cerne do debate jurídico reside exatamente aqui: de um lado, há a limitação do Estado e, do outro, a necessidade de considerar a dignidade da pessoa humana pelo Poder Público. E como proceder em tais casos? Geralmente, observam-se quais medicamentos estão registrados na ANVISA e estes são fornecidos. No entanto, e se o medicamento não estiver registrado? Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal proferiu uma decisão em maio de 2019 no RE 657718/MG, abordando medicamentos não registrados na ANVISA, como os medicamentos experimentais. Esta decisão estabeleceu que, a partir de maio de 2019, a competência para decidir casos excepcionais como esses passou a ser exclusiva da União.

Neste contexto, para elucidar o impasse enfrentado pelo ordenamento jurídico em relação ao tema, analisaremos o REsp nº 2071955, que foi recentemente julgado pela 3ª Turma do STJ. No caso em questão, a mãe ingressou com uma ação em nome do filho, buscando a cobertura integral do medicamento canabidiol prati-donaduzzi, prescrito para tratar as crises convulsivas do menor, que foi diagnosticado com transtorno do espectro autista, transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, além de epilepsia.

O tribunal de primeira instância julgou o pedido como improcedente. Em sua apelação, o TJ/RS decidiu favoravelmente, determinando que a operadora de plano de saúde arcasse com os custos do tratamento e fornecesse o medicamento. No STJ, a Unimed argumentou que o § 13º do art. 10 da Lei 9.656/98 amplia a abrangência das coberturas fornecidas pelos planos de saúde somente em relação aos procedimentos que forem negados devido à ausência de previsão no rol da ANS.

Assim, a Relatora, Ministra Nancy Andrighi, considerou que a intenção do legislador, desde a promulgação da Lei 9.656/98, é excluir os medicamentos de uso domiciliar da cobertura obrigatória imposta às operadoras de plano de saúde. Por esse motivo, ao longo do tempo, algumas exceções a essa regra foram sendo adicionadas à lei. Segundo a Ministra, a regra geral que impõe a obrigação de cobertura de tratamento ou procedimento não listado no rol da ANS não abrange as exceções previstas nos incisos do art. 10, caput.

Segundo a Ministra, caso contrário, as operadoras seriam obrigadas a fornecer assistência farmacológica a um grande número de beneficiários que sofrem de doenças crônicas, para as quais existem no mercado medicamentos de uso domiciliar com eficácia comprovada. Nesse sentido, exceto nos casos previstos em lei, no contrato ou em norma regulamentar, a operadora não pode ser compelida a fornecer cobertura para medicamentos de uso domiciliar. O referido julgamento trouxe a seguinte ementa:

 

RECURSO ESPECIAL. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. SÚM. 284/STF. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚM. 282/STF. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. PLANO DE SAÚDE. COBERTURA DE MEDICAMENTO DE USO DOMICILIAR NÃO LISTADO NO ROL DA ANS. CANABIDIOL PRATI-DONADUZZI. PRESCRIÇÃO QUE ATENDE AOS REQUISITOS DO § 13 DO ART. 10 DA LEI 9.656/1998. 1. Ação de obrigação de fazer ajuizada em 06/01/2022, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 11/01/2023 e concluso ao gabinete em 23/05/2023. 2. O propósito recursal é decidir sobre a obrigação de cobertura, pela operadora de plano de saúde, de medicamento de uso domiciliar não previsto no rol da ANS (Canabidiol Prati-Donaduzzi), cuja prescrição atende aos requisitos do § 13 do art. 10 da Lei 9.656/1998. 3. Os argumentos invocados pela recorrente não demonstram como o Tribunal de origem ofendeu os dispositivos legais indicados, o que importa na inviabilidade do recurso especial (súmula 284/STF). 4. A ausência de decisão acerca dos dispositivos legais indicados como violados impede o conhecimento do recurso especial (súmula 282/STF). 5. A Lei 9.656/1998, especificamente no que tange às disposições do inciso VI e do § 13, ambos do art. 10, deve ser interpretada de modo a harmonizar o sentido e alcance dos dispositivos para deles extrair a regra que prestigia a unidade e a coerência do texto legal. 6. A regra que impõe a obrigação de cobertura de tratamento ou procedimento não listado no rol da ANS (§ 13) não alcança as exceções previstas nos incisos do caput do art. 10 da Lei 9.656/1998, de modo que, salvo nas hipóteses estabelecidas na lei, no contrato ou em norma regulamentar, não pode a operadora ser obrigada à cobertura de medicamento de uso domiciliar, ainda que preenchidos os requisitos do § 13 do art. 10 da Lei 9.656/1998. 7. Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, provido.

 

Por outro lado, a 2ª Turma do STJ, em decisão proferida em março de 2023, determinou que tanto a União quanto o Estado de Pernambuco devem fornecer um medicamento à base de canabidiol a um paciente menor de idade com uma condição de saúde específica, no REsp 2006118/PE.

A Ação Civil Pública foi iniciada pelo Ministério Público Federal no Tribunal Regional Federal da 5ª Região, contra o Estado de Pernambuco e a União. O paciente em questão foi diagnosticado com autismo, síndrome de West (uma forma rara de epilepsia) e síndrome de Beckwith-Wiedemann (uma doença genética rara que afeta o crescimento de certos órgãos do corpo humano e causa dismorfismo). O Tribunal Regional Federal da 5ª Região já havia ordenado o fornecimento do medicamento. Tanto a União quanto o Estado recorreram, argumentando, entre outros aspectos, a falta de registro do remédio na Anvisa, a ausência de estudos que comprovem sua eficácia e a existência de leis que proíbem o fornecimento do medicamento.

O Estado de Pernambuco e a União recorreram da decisão que concedeu o pedido do Ministério Público Federal para fornecer à menor R.D.F.D (iniciais do nome) um medicamento à base de canabidiol (hemp oil cannabidiol) necessário para seu tratamento de saúde. Desde os três meses de idade, a menor começou a ter crises epilépticas, que se tornaram cada vez mais frequentes. A partir de um ano de vida, ela passou a ser acompanhada por um neurologista devido a crises epilépticas do tipo “espasmos infantis”, que não respondiam ao tratamento médico convencional. Após esgotar todas as opções de terapia medicamentosa disponíveis no Brasil, o neurologista Antônio Milton Garcia prescreveu o Hemp Oil (Canabidiol) 15% para melhorar a qualidade de vida da paciente.

O referido caso trouxe a seguinte ementa:

ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TRATAMENTO DE SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO (CANABIDIOL) A MENOR. LEGITIMIDADE SOLIDÁRIA. MEDICAMENTO DE ALTO CUSTO, SEM REGISTRO NA ANVISA E NÃO INCORPORADO À LISTA DO SUS. RESPONSABILIDADE DA UNIÃO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. ART. 1.022 DO CPC/2015. ALEGAÇÃO GENÉRICA. SÚMULA N. 284/STF. NECESSIDADE DA MEDICAÇÃO. ELEMENTOS PROBATÓRIOS DOS AUTOS. SÚMULA N. 7/STJ. MULTA DIÁRIA POR DESCUMPRIMENTO. AUSÊNCIA E PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA N. 282/STF. I – Na origem, Ministério Público Federal ajuizou ação civil contra a União e o Estado de Pernambuco pleiteando, em nome de menor de idade, o fornecimento de medicamento de nome comercial Hem Oil RSH 15%- Canabidiol, necessário ao tratamento da Síndrome de West, Síndrome de Beckwith-Wiendmann e Transtorno de Espectro Autista, que acometem a criança, ocasionando, além de diversas limitações, intensas crises epiléticas. II – A sentença julgou procedente o pedido, condenando os dois réus de forma solidária, decisão mantida, em grau recursal, pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região. RECURSO ESPECIAL DA UNIÃO III – Com base em precedentes jurisprudenciais do STF e desta Corte de Justiça, fundamentando-se na responsabilidade solidária para fornecimento de medicamento; no fato de que a hipótese trata de medicamento de alto custo, não registrado na ANVISA e não incorporado à lista do SUS, a legitimidade passiva da União é de rigor. RECURSOS ESPECIAIS DA UNIÃO E DO ESTADO DE PERNAMBUCO IV – A alegação genérica de violação do art. 1.022 do CPC/2015 em razão da rejeição dos embargos de declaração esbarra na Súmula n. 284/STF. V – O acórdão recorrido, mantendo o entendimento monocrático, deliberou no sentido da necessidade do medicamento em questão para o tratamento da menor, diante da excepcionalidade da situação e de todo o arcabouço probatório dos autos, tais como laudos e prescrições médicas. A pretendida discussão sobre a impossibilidade do respectivo fornecimento esbarra no óbice da Súmula n. 7/STJ. Precedentes: AgInt no REsp n. 1.587.342/PI, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma,DJe de 19/4/2017, AgInt no AREsp n. 997.559/PR, relatora Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe de 26/4/2017. VI – Ausência de prequestionamento em relação ao pretendido debate relacionado à imposição da multa diária por descumprimento da obrigação, uma vez que as partes nada invocaram sobre o tema quando interpuseram seus recursos de apelação, nem mesmo posteriormente, em sede de embargos de declaração. Súmula n. 282/STF. VII – Recursos especiais da União e do Estado de Pernambuco parcialmente conhecidos e, nesta parte, improvidos.

 

Diante do exposto, podemos observar que a efetividade da proteção do direito à saúde requer uma ação coordenada entre os poderes executivo e judiciário, a fim de encontrar uma abordagem consensual. Embora a Constituição federal tenha incorporado diversos mecanismos de democracia direta ou participativa, é evidente que a participação da sociedade civil no controle das políticas de saúde poderia ser mais significativa, iniciando com atividades de conscientização.

Ao examinar as leis, portarias e decretos, observamos que, juntamente com os princípios constitucionais, há um conjunto robusto e desejável para garantir os direitos inerentes à vida. No entanto, para que seja efetivo, é essencial abordar as causas da excessiva judicialização e responder a essas demandas com medidas eficazes, de modo que a mesma questão não necessite ser litigada repetidamente. Em primeiro lugar, é necessário investir em informação, medidas preventivas de saúde e proteção, bem como na educação das novas gerações, para evitar a necessidade de recursos futuros e a alocação inadequada de recursos estatais. É fundamental que as entidades públicas se comprometam com a eficiência administrativa no atendimento aos cidadãos. Atender às necessidades dos pacientes possibilita a otimização na efetivação dos direitos sem recorrer à judicialização.

Dentro do contexto democrático brasileiro, a judicialização pode representar demandas e formas legítimas de ação por parte de cidadãos e instituições. O desafio principal reside em desenvolver estratégias políticas e sociais coordenadas com outros mecanismos e instrumentos de garantia democrática, visando aprimorar os sistemas de saúde e de justiça para garantir a efetividade do direito à saúde.

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

AMARAL, Carlos Eduardo Rios do. Tema 793 do STF, direito à saúde e a coisa julgada parcial. Jus.Com, São Paulo, 15 mar. 2021.

AMORIM, Victor Aguiar Jardim. A Legitimidade do Direito em Nicklas Luhmann. Jus.Com, São Paulo, 24 jul. 2020.

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BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Revista de Direito Social, Porto Alegre, v. 9, n. 34, p. 11-43, 2009.

BERMUDEZ, J. Remédios: saúde ou indústria? A produção de medicamentos no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992.

BRASIL. Casa Civil. SUS completa 30 anos da criação: O Sistema Único de Saúde garante acesso integral, universal e gratuito para toda a população brasileira. Brasília, 21 set. 2020. Disponível em: https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2020/setembro/suscompleta-30-anos-da-criacao. Acesso em: 17 de março de 24.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Portaria nº 344, de 12 de maio de 1998. Aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial. Disponível em: https://bvsms.saúde.gov.br/bvs/saúdelegis/svs/1998/prt0344_12_05_1998_rep.html. Acesso: 17 de março de 24.

 

 

 

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