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ArtigosA regulação dos modelos disruptivos

De plano, importante conceituar que “disruptivo”, conforme dicionário Michaelis, está ligado a um ato de quebra de um curso normal de um processo. Logo, aplicado o aludido conceito ao mundo empresarial, tem-se que ser disruptivo significa criar outros tipos de mercados, que podem, muitas vezes, acabar com ideias e negócios que eram anteriormente consolidados.

Os modelos disruptivos, portanto, têm o condão de inaugurar novos mercados e modelos negociais, com soluções mais simples e eficazes do que as outrora existentes, reconfigurando estruturas e práticas que rompem com aquilo que era praticado, introduzindo, assim, novas formas de disponibilização de bens e de prestação de serviços.

Com efeito, atualmente, verifica-se a substituição de velhas tecnologias, de velhos modos de produção, por inéditas maneiras de produção.

Sobre o tema, cumpre destacar trecho do voto do eminente Ministro Roberto Barroso, especificamente no julgamento do RE n°1.054.110/SP, envolvendo a atividade exercida pela startup Uber, ocasião em que se sopesa a forma como inovação se desenvolve no cenário atual:

 

“Começo, Presidente, pela inovação e impactos sociais à inevitabilidade da mudança. Num livro que se tornou clássico, o historiador israelense Yuval Noah Harari identifica a ocorrência de três grandes revoluções que pautaram a história da humanidade: a revolução cognitiva, a revolução agrícola e a revolução científica.

[…]

E agora nós vivemos esta quarta revolução digital, em que a tecnologia mecânica e analógica é substituída pela tecnologia digital, que permitiu – e aí chegando ao nosso tema específico – a massificação do uso do computador, a massificação do uso do telefone celular e a conexão mundial das pessoas pela rede mundial de computadores, a internet.

[…]

Eu faço essa introdução para contextualizar um mundo que é completamente transformado nas últimas décadas.

[…]

A tecnologia, conhecimento e propriedade intelectual substituíram os bens materiais que faziam a riqueza de outra época. E, desse modo, não há como a velha economia não ser afetada, e é por isso mesmo que está todo mundo em busca de novos modelos de negócios.

[…]

Nós temos um ciclo próprio do desenvolvimento capitalista, em que há a substituição de velhas tecnologias, de velhos modos de produção, por novas formas de produção, numa terminologia nova muitas vezes chamada de inovação disruptiva, por designar ideias capazes de enfraquecer ou substituir indústrias, empresas ou produtos estabelecidos no mercado. Essa não é a única disputa que está ocorrendo entre novas tecnologias e mercados tradicionais: (i) o WhatsApp e as concessionárias de telefonia têm um contencioso próprio; (ii) o Netflix e as empresas de televisão a cabo; (iii) o Airbnb e as redes de hotéis; e, como retratado nesse recurso extraordinário, (iv) entre o serviço de transporte individual por aplicativo e os táxis.

Presidente, penso que nós temos de aceitar como uma inexorabilidade do progresso social o fato de que há novas tecnologias disputando mercado com as formas de tradicionais de oferecimento de determinados serviços. Acho que é inócuo tentar proibir a inovação ou preservar o status quo, assim como, com a destruição das máquinas de tear, no início do século XIX, por trabalhadores ingleses ou, pouco depois, na França, quando se começaram a vender roupas prêt-à-porter, em que os alfaiates também invadiram as grandes lojas, não foi possível frear a revolução industrial. O desafio do Estado está em como acomodar a inovação com os mercados pré-existentes, e penso que a proibição da atividade na tentativa de contenção do processo de mudança, evidentemente, não é o caminho, até porque acho que seria como tentar aparar vento com as mãos. Encerrando a primeira parte do meu voto, digo que há um conjunto de novas tecnologias que se impõem e merecem uma demanda relevante da sociedade. Evidentemente, a melhor forma de o Estado lidar com essas inovações e, eventualmente, com a destruição criativa da velha ordem não é impedir o progresso, mas, sim, tentar produzir as vias conciliatórias possíveis.

[…]

Penso que nós estamos vivendo também, no Brasil, um processo importante de redução de uma das grandes discussões nacionais, que é o oficialismo – essa crença de que tudo que é relevante depende do Estado, das suas bençãos e/ou do seu financiamento”.

 

É inegável que os modelos disruptivos (Uber, WhatsApp, Spotify, AirBnb etc.) acabam por atingir os modelos econômicos “típicos” outrora atuantes, sendo certo que, nesse cenário, a maneira mais apropriada de o Estado lidar com tais inovações é promovendo uma via conciliatória factível junto ao mercado pré-existente.  Em realidade, entre a liberdade plena e a proibição absoluta, deve-se buscar uma maneira para, de um lado, preservar a livre iniciativa e incentivar a inovação e, de outro lado, garantir os direitos dos usuários do serviço e a livre concorrência.

Afinal, deve ser observado que, uma vez dentro do mercado, os novos modelos representarão uma ameaça concorrencial aos negócios que lá existiam, tendo em vista que, como dito, a novas tecnologias rompem com o modo de se prestar e oferecer bens ou serviços, de modo que, com isso, pressionam a competição.

Nesse contexto, os modelos anteriormente estabelecidos veem seus mercados, muitas vezes praticado sob regime de monopólio, ameaçados por empresas que aproveitam as lacunas de regulamentação de novas atividades para a obtenção de vantagens competitivas, sejam elas regulatórias ou tributárias.

Por exemplo, menciona-se o caso do Uber, cujo serviço corresponde ao oferecimento de transporte individual particular, de modo que, inevitavelmente, fez surgir um grande conflito com os motoristas de táxis, os quais, até então, eram os únicos a ofertar referido serviço de transporte de passageiro. É certo que, enquanto os motoristas de taxi têm a atividade regulada pelo Governo e pagam taxas para utilização dos registros (além dos tributos incidentes), a atividade exercida pelo Uber, até pouco tempo, não estava regulada e sobre ela não recaía nenhuma tributação.

Como tudo está acontecendo de forma muito rápida, os modelos disruptivos acabam causando problemas jurídicos e deverão enfrentar um embate com os setores “convencionais”, razão pela qual caberá ao direito se sobrepor à essas mudanças visando assegurar que os Direitos e Garantias Fundamentais previstos na Constituição Federal sejam preservados.

Veja-se que os modelos disruptivos surgem num ambiente que, por questões lógicas, não há qualquer regulação, tendo em vista que, até então, aquela prática comercial sequer se vislumbrava, não havendo como, portanto, o legislador prever normativa para uma situação inexistente.

E, por conta disso, tais modelos se aproveitam das lacunas de regulamentação de novas atividades para obterem vantagens competitivas (regulatórias ou tributárias).

Inclusive, cumpre salientar que a ausência de disciplina normativa sobre determinada atividade empresarial, mormente num regime pautado pela liberdade econômica, incentiva juridicamente sua livre introdução e exploração no mercado pela iniciativa privada, ainda que em regime de coexistência a serviços similares.

Com efeito, há um caminho quase que indissociável da maneira como essa nova tecnologia será posteriormente regulada, valendo destacar que o direito, num primeiro momento, busca a solução das novas questões dentro dos seus próprios institutos, circunstância esta que, porém, nem sempre permitirá uma adequação perfeita junto a esses modelos inovadores.

De toda sorte, não se pode olvidar que, mesmo que se pense na regulação dos modelos disruptivos, deverá ser observada, de maneira concomitante, a necessidade de preservação e promoção da inovação por eles trazidas. Ora, compete ao Estado estabelecer marcos regulatórios claros, preservar a competição e incentivar o empreendedorismo, bem como a inovação, não sendo o seu papel resguardar agentes econômicos dominantes das naturais ameaças trazidas pelos titulares de inovações. Essa é uma diretriz primária que se extrai do regime constitucional da livre iniciativa.

Os modelos disruptivos almejam produção legislativa no intuito de serem devidamente regulamentados, especificamente com a definição da abrangência e dos limites das atividades desenvolvidas, sobretudo em razão do aumento progressivo da sua utilização e da inquestionável insegurança advinda do vácuo legislativo.

Ora, a indigitada regulação é necessária, sendo pertinente destacar, por exemplo, que até hoje o Uber é acionado perante a Justiça do Trabalho considerando colaboradores que continuam defendendo a tese acerca da suposta existência de vínculo empregatício junto à mencionada plataforma (inobstante a impossibilidade de ser reconhecida a presença de uma relação de emprego entre as partes, mormente porque não preenchidos todos os requisitos impostos pelos artigos 2º e 3º da CLT).

O que se deve ter em mente é que a consequência natural dos avanços tecnológicos impõe ao Estado a revisão dos modelos tradicionais de prestação de serviços e de regulação de atividades econômicas, para acompanhar a dinâmica do mercado e sustentar os estímulos à competição e à inovação, as quais promovem o progresso e o avanço das condições de vida da sociedade.

Conforme trazido por Bruno Feigelson[1], “o Estado terá que se estruturar para atender as novas gerações, que a partir de novos anseios, que se refletem em novos modelos disruptivos. Assim, indivíduos com mais acesso à informação e com maior nível crítico acabam por buscar novas formas de vivenciar o Estado e o direito. É preciso que as ciências jurídicas reflitam esse novo mundo, que já não é mais um filme de ficção científica futurista, mas sim uma realidade”.

A garantia da inovação precisa ser tida como o objetivo central das intervenções regulatórias em face dos modelos disruptivos, sendo certo que a regulação, nessa ótica, deve atuar como catalisadora da inovação e não o contrário.

A concorrência cria incentivos para que os agentes de um determinado mercado aumentem a sua produção, constituam preços competitivos e qualifiquem os seus bens e serviços. Esse cenário assegura vantagens para a sociedade, notadamente ampliando o direito de escolha do consumidor.

É certo que a ingerência do Poder Público na regulamentação da atividade privada deve se pautar à luz de valores constitucionais relevantes, os quais precisam ser sempre fundados no interesse coletivo envolvido, materializando atuação do poder de polícia administrativa.

Com efeito, cumprirá à regulação viabilizar o avanço tecnológico, o desenvolvimento e a prestação de serviços de maior qualidade aos seus usuários, ao mesmo tempo em que deverá tutelar a concorrência, tanto permitindo novos agentes quanto impedindo práticas anticompetitivas pelos agentes econômicos envolvidos, sejam eles velhos ou novos.

Desta forma, resta claro que a regulação, além do reconhecimento, traz segurança para que os modelos disruptivos possam se desenvolver sob o amparo do direito. O desafio de compatibilização do direito tradicional aos dinâmicos parâmetros econômicos, consequência do avanço tecnológico global, demanda um posicionamento jurídico que considere toda a complexidade que é pertinente aos fenômenos disruptivos.

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REFERÊNCIAS

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE nº 1.054.110/SP, Rel. Ministro Roberto Barroso, julgado em 9.5.2019, publicado em 14.5.2019. Acesso em 24.7.2021.

DICIONÁRIO MICHAELIS. Palavra Disrupção. Disponível em: Michaelis On-line (uol.com.br). Acesso em 24.7.2021.

Feigelson, Bruno. A relação entre modelos disruptivos e o direito: estabelecendo uma análise metodológica baseada em três etapas, In: Rafael Véras de Freitas; Leonardo Coelho Ribeiro; Bruno Feigelson (Coord.), Regulação e novas tecnologias, 2017.

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[1]Feigelson, Bruno. A relação entre modelos disruptivos e o direito: estabelecendo uma análise metodológica baseada em três etapas, In: Rafael Véras de Freitas; Leonardo Coelho Ribeiro; Bruno Feigelson (Coord.), Regulação e novas tecnologias, 2017, p. 59.

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