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ArtigosAbandono afetivo: a justificativa para a relativização do patronímico em defesa da dignidade do filho

 

No sistema judicial brasileiro, casos que envolvem a remoção do sobrenome, seja ele paterno ou materno, devido ao abandono afetivo são frequentes. Esses casos evidenciam um aumento significativo do abandono afetivo, bem como o impacto emocional negativo que o sobrenome pode causar nessas pessoas. Um exemplo marcante ocorreu em 2020, quando a mídia divulgou o julgamento da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Nesse caso, houve uma reversão de uma decisão de primeira instância, permitindo a retirada do sobrenome paterno de uma mulher em decorrência do abandono afetivo e material por parte do genitor. Essa situação demonstra a relevância social do tema e desperta um interesse significativo na pesquisa relacionada a essa questão.

Ao longo dos anos, o conceito de família passou por transformações significativas, especialmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Para esta, o termo “família” não é estático nem inflexível, abrangendo diversas formas de organização que se fundamentam na relação de afeto entre os seus membros. É evidente, portanto, que a essência da família reside na afetividade, não dependendo exclusivamente de laços sanguíneos ou convivência física. Nesse sentido, a afetividade se estabeleceu como o centro das relações familiares, e a sua ausência pode até mesmo resultar em responsabilidades no âmbito civil, ainda que de forma implícita.

O afeto, no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, é considerado a base das relações familiares, não se limitando mais apenas aos vínculos biológicos. Nesse contexto, a afetividade adquiriu uma posição significativa no Direito das Famílias. O fato de não ser mencionado expressamente na Constituição Federal de 1988 não é relevante, pois decorre de diversos princípios ali dispostos, especialmente o princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Além disso, a caracterização da afetividade como um princípio fundamental justifica diversos avanços na interpretação e aplicação das leis, como por exemplo o reconhecimento da união estável.

Isso se justifica pela análise das leis infraconstitucionais e pelo posicionamento jurisprudencial predominante. Um exemplo disso é a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que em seu artigo 5º, III, considera violência doméstica aquela praticada “em qualquer relação íntima de afeto”. O legislador, ciente de que não pode prever todas as situações futuras, empregou a afetividade como um princípio geral para respaldar a aplicação da lei em diversas circunstâncias. No âmbito do posicionamento jurisprudencial, é relevante observar que sua função é aplicar a lei, que geralmente não acompanha imediatamente os avanços sociais, aos casos concretos. Por esse motivo, muitas atualizações são introduzidas na própria jurisprudência. Um exemplo disso é o Superior Tribunal de Justiça, que em 2003, no REsp 119.346/GO, utilizou o princípio da afetividade para justificar uma adoção ocorrida de forma irregular há mais de quarenta anos. Desde então, a corte tem reiterado esse entendimento, assim como outros tribunais, o que reforça a ideia de que a afetividade é um princípio fundamental no ordenamento jurídico.

A partir dessas perspectivas, torna-se evidente a significativa importância que a instituição familiar possui na sociedade, exercendo uma influência extremamente poderosa tanto na formação de indivíduos socialmente equilibrados quanto, em contrapartida, na eventualidade de ausência de afeto, na formação de indivíduos marginalizados. Diante da relevância dessa instituição, torna-se essencial compreender o conceito de abandono afetivo e explorá-lo dentro do contexto fático.

O abandono afetivo pode ser compreendido, conforme o próprio termo sugere, como a falta de afeto necessário na relação entre pais e filhos. Não se trata de uma avaliação do amor em si. É essencial evitar a confusão entre abandono afetivo e amor, pois este último é um conceito mais abrangente, que inclui aquele. Esse entendimento é crucial para evitar a interpretação equivocada de que o Direito está adentrando em aspectos que não são de sua competência, como a avaliação do “amor” em uma relação entre pais e filhos. Em outras palavras, o abandono afetivo não se caracterizaria pela falta de amor de um pai em relação a um filho, mas sim pela não observância de obrigações legais, como o cuidado durante a fase de desenvolvimento, tanto físico quanto psicológico, da criança.

Nota-se, portanto, que o cuidado e a dedicação de um pai em relação ao filho não são simplesmente preferências individuais ou escolhas pessoais, mas sim requisitos fundamentais para o desenvolvimento saudável da criança ou adolescente. O abandono afetivo, embora seja considerado “comum” no contexto brasileiro, é totalmente inaceitável.

Por meio desta definição, torna-se evidente a existência de uma relação contraditória entre o princípio da paternidade responsável e o abandono afetivo. Enquanto a paternidade responsável implica, como o próprio nome sugere, em obrigações e responsabilidades que os pais devem cumprir, o abandono afetivo representa o descumprimento dessas obrigações, resultando no desamparo da criança ou adolescente, que acaba por crescer e se desenvolver desprovido de apoio emocional adequado. De modo geral, a paternidade pode ser entendida como um vínculo que envolve direitos e deveres dos pais em relação aos filhos, fundamentado principalmente no afeto e na responsabilidade.

Por isso, a Constituição Federal de 1988 assegura implicitamente a Paternidade Responsável no seu art. 226, §7°, não sendo apenas uma manifestação do princípio da Dignidade da Pessoa Humana, mas sim um requisito a ser compreendido e observado para garantir os direitos fundamentais da criança e/ou adolescente. Além da Constituição Federal de 1988, o Código Civil de 2002, em especial no art. 1634, estabelece o princípio da paternidade responsável. Em resumo, é incumbência dos pais educar, criar, zelar e assistir aos filhos menores, sempre buscando o seu melhor desenvolvimento. Comportamentos contrários ao estipulado em lei podem acarretar consequências inclusive no âmbito patrimonial.

A partir do art. 226, §7° da CF/88, percebe-se uma verdadeira dualidade no princípio da paternidade responsável. Por um lado, o Estado não intervém na decisão do casal em conceber ou não filhos, sendo uma escolha exclusiva do casal é vedada qualquer interferência externa. No entanto, uma vez que uma criança é concebida, é responsabilidade dos pais cuidar, zelar, educar, prover e garantir um desenvolvimento saudável para o filho.

É essencial ressaltar que o conceito de “paternidade responsável” não deve ser interpretado como uma imposição de obrigações exclusivamente ao pai. As responsabilidades decorrentes desse princípio devem ser observadas por ambos os genitores, pai e mãe, e não apenas por um deles. Limitar essa interpretação poderia comprometer a própria igualdade entre homens e mulheres estabelecida pela Constituição Federal de 1988.

Dados indicam que, no Brasil, em 2009, um número significativo de crianças em idade escolar estava registrada sem o nome do pai, totalizando 4.869.363, das quais 3.853.972 eram menores de 18 anos. Essas estatísticas preocupantes levaram o Conselho Nacional de Justiça a lançar o projeto “Pai Presente” em 2010, através do Provimento n° 12. O objetivo principal era incentivar os pais a registrarem seus filhos e, além disso, a se tornarem presentes em suas vidas e desenvolvimento.

O nome é composto por elementos conhecidos como prenome e sobrenome. Em geral, esses elementos são regidos pelo princípio da imutabilidade, conforme estabelecido na Lei de Registros Públicos, especialmente em seu artigo 58, visando proteger as pessoas. Essa medida se justifica pelo fato de que o nome civil é o registro público oficial, conferindo identidade, autenticidade e confiabilidade, e não seria do interesse do Estado permitir alterações arbitrárias por parte do titular do registro, o que comprometeria a função primordial do nome civil: a individualização.

Dentro do escopo da Lei de Registros Públicos, é estabelecido o princípio da imutabilidade do nome, visando proporcionar proteção tanto no âmbito público quanto no privado. No entanto, esse princípio de imutabilidade tem sido objeto de certa relativização, conforme jurisprudência e doutrina, com o intuito de acompanhar as mudanças sociais e, de modo geral, assegurar o princípio da dignidade da pessoa humana.

No entanto, as mudanças legislativas e, principalmente, o posicionamento jurisprudencial têm flexibilizado o princípio da imutabilidade do nome, ainda que de maneira limitada, visando garantir os direitos das pessoas. Fica evidente que, em relação ao nome, prevalece a imutabilidade relativa, a qual é determinada por lei ou por decisão fundamentada do juiz. Existe um prazo decadencial de 1 (um) ano após atingir a maioridade para a mudança do prenome, sem necessidade de justificativa, conforme estipulado no art. 56 da Lei de Registros Públicos. No entanto, esse dispositivo legal restringe a alteração apenas ao prenome, não permitindo a modificação do sobrenome. Ademais, embora não seja mencionado no texto legal, há a possibilidade de acrescentar ao sobrenome existente componentes de patronímicos de outros ascendentes, como avó, bisavó e outros.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, foi estabelecido um princípio fundamental que serve de base para todas as relações sociais: a Dignidade da Pessoa Humana. A partir desse momento, passou-se a compreender que não é suficiente que uma determinada situação esteja em conformidade com a lei; ela também deve respeitar, em igual medida, a dignidade da pessoa humana. No que diz respeito à possibilidade de modificar o nome, especialmente o sobrenome, para o qual a lei de Registros Públicos impõe restrições, a dignidade da pessoa humana tem sido um dos principais argumentos para garantir e respeitar as peculiaridades de cada indivíduo. Deve-se compreender que um nome, independentemente de seus elementos constituintes, é ineficaz se não salvaguardar a dignidade da pessoa.

Conforme mencionado anteriormente, o princípio da imutabilidade do sobrenome tem sido considerado relativo, sendo entendido pela jurisprudência e pela doutrina que, quando há motivo justificado para a alteração ou supressão desse sobrenome, tal modificação é possível. No contexto da supressão em decorrência do abandono afetivo, Tartuce (2021) considera isso um motivo justo para retirar o patronímico, argumentando que, como o nome é um elemento identificador, não é razoável que o indivíduo permaneça com um sobrenome que o remeta ao abandono sofrido pelos genitores. Os tribunais, em geral, têm se posicionado favoravelmente à supressão do patronímico devido ao abandono afetivo. Um exemplo disso é o julgamento da Apelação Cível n° 0006207-54.2014.8.16.0179 pelo Tribunal de Justiça do Paraná, no qual a apelante alegou ter sido abandonada por seu genitor antes de completar 1 ano de idade, e o uso do sobrenome paterno apenas lhe causava sentimentos de humilhação e tristeza.

O Superior Tribunal de Justiça tem demonstrado, em vários julgamentos, uma inclinação favorável à flexibilização do princípio da imutabilidade em casos de abandono afetivo. No Recurso Especial 13.04718/SP, de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, o recorrente foi abandonado pelo pai aos 7 meses de idade, sem receber qualquer apoio moral ou financeiro. O relator fundamentou sua decisão destacando que o nome é uma das formas de identificar a família e que, conforme evidenciado no processo, não houve uma efetiva relação paterno-filial estabelecida, não havendo razão para que o recorrente mantivesse o sobrenome paterno, especialmente por ser fonte de sentimentos negativos.

É evidente que o Superior Tribunal de Justiça adota uma postura favorável à relativização do princípio da imutabilidade do sobrenome, reconhecendo que a lei não pode se sobrepor às circunstâncias específicas de cada caso. Quando o sobrenome expõe o indivíduo a uma situação vexatória devido ao abandono afetivo, isso configura um motivo legítimo para sua exclusão.

Portanto, tanto a jurisprudência quanto a doutrina convergem ao considerar o abandono afetivo como um motivo legítimo para a remoção do sobrenome daquele que o abandonou. Como destacado ao longo deste estudo, a primazia da dignidade da pessoa humana deve prevalecer sobre o texto legal, que muitas vezes não consegue acompanhar os avanços sociais.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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