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ArtigosA cessão de créditos por instituições financeiras e o modelo “originar para distribuir”

A intermediação de recursos financeiros entre agentes superavitários e deficitários constitui o elemento central de definição do conceito das instituições financeiras, em sua concepção mais abrangente, que se desenvolve sob as perspectivas de gestão de ativos e passivos quanto à liquidez (ativos e passivos de maior ou menor liquidez), à duração (ativos e passivos de longo e de curto prazo de vencimento) e ao risco (ativos e passivos de menor ou maior risco de crédito)[1]. Depreende, isso posto, que a construção histórico-cultural da compreensão da instituição financeira ocorreu sob a concepção de intermediação, seja na perspectiva do poupador ou investidor, seja na perspectiva do tomador ou financiado.

No Brasil, o conceito de instituição financeira encontra-se positivado no art. 17 da Lei nº 4.595/1964: “Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros”. Acerca do referido conceito, assevera Gustavo Mathias Pinto[2] que

“O art. 17 da Lei 4.595/1964 representou um esforço de definição mais abrangente das atividades de intermediação financeira, estipulando que seriam consideradas instituições financeiras as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tivessem como ‘atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros’. Acrescentou, ainda, em seu parágrafo único, a equiparação às instituições financeiras para as pessoas físicas que exercessem quaisquer das atividades referidas naquele artigo, de forma permanente ou eventual. Esse conceito, no entanto, foi objeto de críticas em virtude de seu escopo, considerado desmesuradamente amplo, bem como as dificuldades impostas para sua adequada interpretação em razão de sua generalidade. Considerando a quantidade de atividades que envolvem coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, uma interpretação puramente gramatical do artigo faria com que poucas atividades escapassem do enquadramento como instituições financeiras.”

As instituições financeiras operavam, portanto, com a originação de créditos, ou seja, com a realização de operações de empréstimos e financiamentos, a curto ou longo prazo, com o escopo de manutenção de tais operações creditícias em seus balanços, cuja obtenção dos retornos financeiros esperados significavam relevante parte da gestão de ativos e passivos. Referido modelo financeiro foi denominado como “originar-para-deter”, utilizado historicamente num modelo de concessão de crédito em que a instituição financeira detinha o ativo em seu balanço, dada a qualidade do próprio ativo: raros eram os casos de impagamento do financiamento, somado à garantia qualificada da operação (muitas vezes, garantido pelo bem financiado, como um imóvel ou um veículo).

O modelo “originar para deter” foi transformado, na viragem do novo século, num modelo “originar para distribuir”. Os originadores de empréstimos hipotecários começaram a persuadir os mutuários a comprar casas muito além de sua capacidade financeira. Os mutuários recebiam frequentemente empréstimos que não só representavam 100% do valor das suas casas, como também incluíam custos substanciais de encerramento. Os mutuários pouco sofisticados eram frequentemente induzidos a comprar as casas através da oferta inicial de taxas atrativas (inferiores às taxas de mercado), que, quando mais tarde aumentaram substancialmente, estavam para além da capacidade de pagamento dos mutuários. Um resultado do aumento da procura de propriedade por parte de pessoas anteriormente não qualificadas para comprar casas foi a escalada dos preços das casas quase diariamente a um nível extraordinário, o que parecia tornar o investimento numa proposta sem perdas[3]. Assevera-se que não há regras que determinem aos bancos o dever de adotar exclusivamente o modelo de “originar-para-deter” créditos[4], o que propicia a adoção, em vários casos, do modelo “originar para distribuir”.

O termo “originar para distribuir” possui o seguinte sentido: muitos bancos redirecionaram do modelo de realizar empréstimos e mantê-los nos seus livros para o modelo de vender portifólios de empréstimos, para remover riscos de liquidez e de crédito de seus balanços; assim, o setor bancário mudou de seu modelo tradicional, focado na originação direta e na detenção de uma parcela significativa dos empréstimos feitos, ao desconstruir o processo de intermediação de crédito financiado por depósitos e empréstimos de longo prazo por bancos tradicionais, e transmudando-o em uma cadeia de intermediação mais complexa, financiada por atacado e baseada em securitização[5].

No ordenamento jurídico pátrio, a cessão de crédito consiste em um negócio jurídico em virtude do qual o credor (cedente) transmite total ou parcialmente o seu crédito a um terceiro (cessionário), mantendo-se a mesma relação obrigacional com o devedor (cedido). Se houvesse uma nova obrigação, haveria uma novação subjetiva ativa; mas na cessão de crédito a obrigação que se transfere é a mesma. A cessão de direitos creditórios sem coobrigação corresponde à venda em definitivo de títulos e valores mobiliários. A matéria encontra-se regulamentada nos artigos 286 a 298 do Código Civil.

Para a materialização de cessão sem coobrigação, deve-se aplicar a regra do art. 296, em que o cedente, salvo estipulação em contrário, não responde pela solvência do devedor. Nesse sentido, para fins de direito, o termo de cessão de crédito deve explicitar o caráter pro soluto da cessão do crédito, ou seja, de que o cedente somente se responsabiliza pela existência do crédito, mas não pela solvência. Caso contrário, se restar configurada a cláusula pro solvendo, ou seja, respondendo o cedente também pela solvência, haverá a coobrigação.

No âmbito do sistema financeiro nacional, a Resolução CMN nº 2.836, de 30 de maio de 2001, que consolida normas sobre cessão de créditos no âmbito das instituições financeiras, assim dispõe em seu art. 1º:

Art. 1º Autorizar as instituições financeiras a ceder, a instituições da mesma natureza, créditos oriundos de operações de empréstimo, de financiamento e de arrendamento mercantil.

A cessão de créditos entre instituições financeiras pode ser efetuada com ou sem coobrigação da instituição cedente. Veda a norma, entretanto, a recompra, a prazo, de créditos vincendos, anteriormente cedidos.

Também a mencionada Resolução autoriza as instituições financeiras a ceder créditos oriundos de operações de empréstimo, financiamento e arrendamento mercantil para pessoas não integrantes do Sistema Financeiro Nacional, observado que: (i) somente são admitidas as cessões de crédito realizadas sem coobrigação da instituição cedente; (ii) não é permitida a recompra dos créditos cedidos; e (iii) a liquidação das operações deve ser efetuada à vista.

Nesses casos, o contrato respectivo deve conter as especificações da operação e permanecer à disposição do Banco Central do Brasil na sede da instituição cedente. Ainda, qualquer transação posterior envolvendo os créditos objeto de cessão não poderá́ acarretar retorno do risco, ainda que de forma indireta, para a instituição financeira cedente.

Deve, para tanto, a instituição financeira cedente incluir, no primeiro balanço publicado após a realização da cessão, nota explicativa informando os valores contábil e de cessão dos créditos, bem como os reflexos patrimoniais e no resultado decorrentes da transação.

A Resolução CMN nº 3.998, de 28 de julho de 2011, que dispõe sobre o registro de operações de cessão de créditos e de arrendamento mercantil em sistemas de registro e liquidação financeira de ativos autorizados pelo Banco Central do Brasil, determina que as cessões de crédito das instituições financeiras devem ser registradas em sistemas de registro e de liquidação financeira de ativos autorizados pelo Banco Central do Brasil:

“Art. 1º As operações de cessão de créditos relativas a empréstimos e financiamentos com consignação das prestações em folha de pagamento, bem como de financiamento de veículos automotores realizadas pelas instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, nos termos da regulamentação em vigor, devem ser objeto de registro, pelo cedente e pelo cessionário, em sistemas de registro e de liquidação financeira de ativos autorizados pelo Banco Central do Brasil.

Parágrafo único. Estão também sujeitas ao registro de que trata o caput:

I – as operações de cessão de créditos nas modalidades citadas no caput contratadas antes da entrada em vigor desta Resolução, cujos créditos cedidos apresentem parcelas vincendas a partir de 22 de agosto de 2011; e

II – as demais operações de cessão de créditos e as de cessão de arrendamento mercantil, conforme cronograma a ser estabelecido pelo Banco Central do Brasil.”

Determina a norma regulatória que os contratos das operações de cessão de créditos das instituições financeiras, inclusive nas situações de cessão parcial do crédito, devem prever a obrigação de registro pelo cedente e sua confirmação pelo cessionário, não sendo admitidas operações de cessão de créditos sem que ocorra o correspondente registro.

Observa-se, portanto, que a cessão de créditos por instituições financeiras permite transferir riscos associados aos ativos, eliminando-os de seus balanços, adicionar liquidez, e permitir que os incumbentes se envolvam mais em atividades de expansão ou reinvestimento, eliminando incertezas de adimplência, prazo de pagamento e taxas de retorno variáveis. Todavia, cabe ao Banco Central, observada sua competência normativa, regular e supervisionar a originação e cessão de créditos por instituições financeiras, nomeadamente quanto ao modelo de “originar para distribuir”, seja pelos riscos sistêmicos que a cessão entre instituições financeiras potencialmente produz, seja pela transferência dos riscos próprios do setor financeiro regulado – e devidamente endereçados pelos incumbentes tradicionais – para o setor financeiro não-regulado.

 

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[1] Nesse sentido, Roy Girasa: “Bancos e outros intermediários financeiros, tais como associações de poupança e empréstimo e cooperativas de crédito, desenvolvem atividades que, por inerência, transferem os riscos potenciais ao longo de um período de tempo alargado, nomeadamente uma transformação qualitativa dos ativos ou uma transformação na sua maturidade, através da qual os bancos aceitam depósitos de curto prazo e os convertem em empréstimos de longo prazo, de que são exemplo os empréstimos hipotecários; a transformação de liquidez, em que os ativos de um banco são menos líquidos do que as suas responsabilidades; e a transformação de crédito, em que os bancos repartem o seu risco através da concessão de empréstimos a uma variedade de pessoas, indivíduos e empresas, cada uma com um grau de qualidade variável” (GIRASA, Roy. Shadow Banking: The Rise, Risks, and Rewards of Non-Bank Financial Services. Palgrave Macmillan, 2016, p. 3).

[2] PINTO, Gustavo Mathias Alves. Regulação sistêmica e prudencial no setor bancário brasileiro. São Paulo: Almedina, 2015, p. 113-114.

[3] GIRASA, Roy. Ibidem, p. 169-170.

[4] LEMMA, Valerio. The Shadow Banking System: Creating Transparency in the Financial Markets. Ed. Palgrave Macmillan, 2016, p. 82.

[5] LUTTRELL, David, ROSENBLUM, Harvey, THIES, Jackson. Understanding the Risks Inherent in Shadow Banking: A Primer and Practical Lessons Learned. Dallas Fed – Staff Papers, 2012, p. 7-8.

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