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ArtigosReflexões sobre a legislação para consumidores superendividados no Brasil: um estudo da Lei n° 14.181/2021

A falta de uma regulação estatal adequada durante a democratização do acesso ao crédito resultou na ampliação dos riscos associados à disparidade nas relações de consumo, especialmente em relação à vulnerabilidade dos consumidores. Isso é evidenciado pelo crescente comprometimento da renda dos consumidores em detrimento de sua subsistência básica e integração social. O fenômeno do superendividamento dos consumidores é agora uma questão econômica, social e legal significativa na sociedade contemporânea. Dada a inadequação dos métodos jurídicos convencionais para lidar com essa demanda dos consumidores modernos, o superendividamento tem sido alvo de atenção legislativa em todo o mundo.

Assim, conforme explica Cristina Tereza Gaulia (2016, p. 46), após a Segunda Guerra Mundial, a liberalização do crédito foi promovida como uma estratégia para tornar mais acessíveis os bens de consumo imediato, com o objetivo de promover a ideia de que o estilo de vida das famílias estadunidenses – o “american way of life” – seria o modelo a ser seguido para a restauração da normalidade global. O crédito, portanto, foi apresentado como uma ferramenta que facilitaria o acesso à felicidade, promovida pela propaganda como a “redenção” proporcionada pelo consumo.

Por um lado, o crédito desempenhou um papel crucial na melhoria da qualidade de vida das famílias, possibilitando o acesso a novos produtos e tecnologias, o que, por sua vez, estimulou a demanda, a produção e a oferta de empregos, contribuindo para o aumento do poder aquisitivo das populações e o crescimento econômico dos países. Por outro lado, no entanto, o crédito também trouxe consigo uma série de desafios, como publicidade agressiva, pressão financeira, cultura do trabalho excessivo, bolhas de crédito, falta de incentivo à poupança e, é claro, o superendividamento.

A democratização do acesso ao crédito tem sido e continua a ser uma ferramenta crucial para tornar mais acessíveis bens de consumo imediato e para popularizar produtos e serviços. No entanto, na ausência de uma regulação estatal adequada, essa democratização também resultou na ampliação dos riscos associados à disparidade nas relações de consumo, especialmente em relação à vulnerabilidade do consumidor. Isso é evidenciado pelo crescente comprometimento da renda dos consumidores em detrimento de sua subsistência física e social.

Em resumo, o superendividamento ocorre quando os consumidores não conseguem quitar suas dívidas, pois estas ultrapassam seu patrimônio e renda disponíveis. Os impactos desse fenômeno podem ser observados em estudos que apontam não apenas o estresse financeiro resultante, mas também sua conexão direta com a redução da produtividade dos trabalhadores, a dificuldade de reintegração ao mercado de trabalho, o aumento da criminalidade e o prejuízo econômico para os países. O superendividamento dos consumidores representa um fenômeno global de natureza social, econômica e jurídica, o qual foi exacerbado pela pandemia de Covid-19, resultando na recessão econômica em muitos países ao redor do mundo. No contexto brasileiro, em particular, os índices de endividamento familiar e desemprego atingiram níveis recordes tanto em 2020 quanto em 2021.

Conforme definição do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), o superendividado é aquele cuja renda está tão comprometida que ele perdeu a capacidade de pagar suas dívidas a ponto de colocar em risco sua subsistência, ou seja, ele não consegue mais quitar despesas básicas como alimentação e moradia. Portanto, pode-se inferir que o superendividamento refere-se a: a) uma incapacidade global e duradoura de pagar dívidas, diferenciando-se de dificuldades financeiras temporárias; b) excluindo aquelas decorrentes de crimes, pensão alimentícia ou obrigações fiscais; c) afetando consumidores individuais; d) de boa-fé; e) cujos ativos e rendimentos são insuficientes para cumprir suas obrigações dentro de um período razoável.

Observa-se, portanto, que o fenômeno do superendividamento, embora afete apenas pessoas físicas, não deve ser equiparado à insolvência civil descrita no Código Civil, pois não se limita apenas à incapacidade financeira de cumprir obrigações. A identificação do superendividamento requer a qualificação específica de certos tipos de dívidas e de determinados consumidores. Como um fenômeno inerente à vida em sociedade, o superendividamento não está ligado a um perfil individual específico, como gênero, raça, ocupação, religião, entre outros. Ele pode afetar uma ampla gama de pessoas, uma vez que surge como resultado da dinâmica da sociedade de consumo na qual estamos inseridos. As causas do superendividamento podem variar dependendo da sociedade em análise, mas é possível identificar alguns padrões, considerando que o crédito é a principal causa desse fenômeno.

Historicamente, o contexto propício ao superendividamento resulta da interação de diversos fatores: a desregulamentação dos mercados de crédito, que inclui a diminuição dos mecanismos de controle por parte dos bancos centrais sobre o volume de crédito e a abolição de limites de juros; o excesso de oferta de crédito e sua concessão irresponsável; a falta de informação e educação financeira dos consumidores; além da diminuição do estado de bem-estar social – países que não fornecem serviços públicos de saúde e educação de qualidade sobrecarregam o orçamento das pessoas com essas despesas. No Brasil, onde as estimativas do IDEC (2021) apontam que o número de superendividados chega a cerca de 30 milhões de consumidores, várias pesquisas indicam uma tendência marcante de correlação entre a ocorrência do superendividamento e o perfil dos superendividados, sugerindo uma forte associação com causas de natureza socioeconômica.

Nesse contexto, é relevante destacar que a eclosão da pandemia de Covid-19 em março de 2020 e suas consequências econômicas, tanto no Brasil quanto globalmente, agravaram as já adversas condições financeiras enfrentadas pelos endividados no país. Segundo dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), o primeiro semestre de 2021 registrou um percentual de 69,7% das famílias brasileiras com algum tipo de dívida, alcançando o maior índice de endividamento familiar desde o início da série histórica da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) em 2010. Esse recorde superou os números já elevados de endividamento registrados em 2020 (CNC, 2021). Além disso, a taxa de desemprego no país também ultrapassou médias históricas, atingindo 13,5% da população, conforme dados do IBGE (2021).

Diante desse contexto crítico, em 02/07/2021, foi sancionada a Lei n° 14.181/2021, cujo projeto original estava em tramitação no Congresso Nacional desde 2012. Conhecida como Lei do Superendividamento, essa nova legislação atualiza o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e o Estatuto do Idoso, introduzindo disposições destinadas a prevenir o superendividamento dos consumidores e estabelecer procedimentos para a renegociação de dívidas, semelhantes a uma “recuperação judicial do consumidor”.

Como resumido na ementa da legislação, a Lei 14.181 modifica a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), e a Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), com o objetivo de aprimorar a regulamentação do crédito ao consumidor e abordar questões relacionadas à prevenção e ao tratamento do superendividamento. Assim, a primeira modificação promovida por ela está relacionada à Política Nacional das Relações de Consumo, conforme estabelecido no artigo 4º do CDC. Esta alteração acrescenta entre seus princípios o “estímulo a iniciativas voltadas para a educação financeira e ambiental dos consumidores” e a “prevenção e tratamento do superendividamento como meio de evitar a exclusão social dos consumidores”.

A Lei nº 14.181 incorpora, então, mais três direitos básicos, que são: “a garantia de práticas de crédito responsável, educação financeira e prevenção e tratamento de situações de superendividamento, resguardando o mínimo vital, conforme regulamentação, por meio da revisão e renegociação da dívida, entre outras medidas”; “a proteção do mínimo vital, conforme regulamentação, durante a renegociação de dívidas e a concessão de crédito”; e ainda “a divulgação de informações sobre os preços dos produtos por unidade de medida, como por exemplo, por quilo, litro, metro ou outra unidade, conforme aplicável”.

As mudanças mais concretas da Lei do Superendividamento em relação à prevenção e tratamento desse fenômeno se manifestam, respectivamente, com a introdução dos Capítulos VI-A e V no Código de Defesa do Consumidor. O novo artigo 54-A, de acordo com seu parágrafo primeiro, define o conceito legal brasileiro de superendividamento. Conforme estipulado pelo dispositivo, o superendividamento é entendido como a clara incapacidade do consumidor pessoa física, de boa-fé, de pagar integralmente suas dívidas de consumo, tanto as exigíveis quanto as futuras, sem comprometer seu mínimo vital, conforme estabelecido pela regulamentação.

Além das medidas destinadas a prevenir e evitar o superendividamento, a nova legislação introduz um procedimento judicial para lidar com a situação dos consumidores já superendividados, centrado na conciliação. Semelhante à abordagem de recuperação judicial aplicada a empresas conforme a Lei de Falências, o artigo 104-A estabelece que:

 

(…) “a pedido do consumidor pessoa física superendividado, o juiz pode iniciar um processo de renegociação de dívidas, com a realização de uma audiência conciliatória, presidida por ele ou por um conciliador designado pelo tribunal. Todos os credores das dívidas previstas no artigo 54-A deste Código devem estar presentes, na qual o consumidor propõe um plano de pagamento com um prazo máximo de 5 anos, respeitando o mínimo vital conforme estabelecido pela regulamentação, e as garantias e formas de pagamento originalmente acordadas.”

 

Algumas dívidas, porém, não serão passíveis de inclusão no processo de renegociação, mesmo que resultem de relações de consumo. Este é o caso das dívidas “originárias de contratos celebrados com dolo, sem a intenção de efetuar pagamento, assim como as dívidas decorrentes de contratos de crédito com garantia real, financiamentos imobiliários e crédito rural”.

É relevante ressaltar que o requerimento para iniciar um processo judicial de renegociação de dívida pelo consumidor não resultará em declaração de insolvência civil e só poderá ser feito novamente após um período de 2 anos, a partir da liquidação das obrigações estipuladas no plano de pagamento aprovado, sem prejudicar a possibilidade de uma renegociação subsequente.

Pode-se observar que a nova legislação dá destaque ao Princípio do Crédito Responsável, tanto pela linguagem adicionada ao artigo 6º do CDC (particularmente em seu novo inciso IX), quanto pelo conjunto de práticas exigidas ou proibidas a consumidores e fornecedores ao longo do texto. O Princípio do Crédito Responsável reflete a compreensão de que o superendividamento é um fenômeno social, cuja responsabilidade não deve ser inteiramente atribuída ao consumidor em tal situação. A formulação desse princípio se fundamenta na disparidade entre as partes na relação de consumo, nos desequilíbrios estruturais do mercado entre fornecedores e consumidores, os quais se manifestam não apenas em termos econômicos, mas também em aspectos técnicos e informacionais.

Portanto, uma vez que possuem um maior conhecimento e informações técnicas sobre a concessão e utilização do crédito, cabe aos fornecedores a responsabilidade de adotar medidas razoáveis para evitar o superendividamento, impedindo que a vulnerabilidade do consumidor seja explorada em seu prejuízo.

Diante do exposto, conclui-se que o Brasil ainda requer amplo debate sobre o tema, visando aperfeiçoar a legislação recentemente aprovada. Embora represente um avanço significativo no combate ao superendividamento no país, essa legislação ainda apresenta lacunas significativas que impedem uma solução eficaz para esse fenômeno.

Por outro lado, o consumidor superendividado não é necessariamente uma pessoa consumista e irresponsável. Pesquisas e dados revelam que a maioria dos consumidores se encontra nessa situação devido a circunstâncias externas à sua vontade, fora de seu controle – são superendividados passivos. Dessa forma, ninguém está completamente imune a essa condição. Dada a amplitude dos impactos dessa situação, tanto no âmbito pessoal do consumidor e de sua família quanto no âmbito público, é imperativo não encarar o superendividamento de forma simplista. A intensa atividade legislativa em todo o mundo ao longo de décadas em relação a esse tema não é mera coincidência; pelo contrário, demonstra que o assunto requer revisão e aprimoramento contínuos, em sintonia com as rápidas transformações do mercado de crédito. Portanto, não podemos considerar a promulgação da Lei nº 14.181 como o fim desse processo de enfrentamento.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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