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ArtigosMultiparentalidade: parentalidade estendida e a oportunidade de registrar múltiplos laços parentais

O direito de família contemporâneo, em comparação com outros ramos jurídicos, destaca-se por sua constante renovação. Muitos paradigmas foram deixados para trás na busca contínua por alinhamento com uma realidade social em constante mudança, caracterizada pela multiplicidade de nuances que refletem o fenômeno atual de individualização de estilos de vida, os quais surgem e desaparecem rapidamente.

Uma das grandes conquistas fundamentais para a (re)construção de todos os seus elementos reside na compreensão de que conceitos como família, paternidade, maternidade, filiação e parentesco não são meros conceitos naturalizados ou predefinidos, mas sim definições que devem ser entendidas pelas ciências, incluindo a ciência jurídica, como construções culturais ou criações humanas, que merecem ser questionadas em seus contextos civilizacionais. Assim, o conceito de uma vida digna para cada pessoa assume uma natureza tão pessoal quanto suas próprias escalas de valores individuais, permitindo que cada indivíduo construa sua personalidade de acordo com suas próprias preferências.

Isso resulta na capacidade de cada indivíduo formar uma família com base no “modelo” que melhor atenda às suas necessidades de desenvolvimento pessoal e proteção da sua concepção de dignidade, seja esse modelo convencional ou não. Por essa razão, o direito de família contemporâneo se fundamenta em princípios que garantem a diversidade de estruturas familiares e a igualdade material entre elas, independentemente de estarem tipificadas na legislação ou não. Isso ressalta a natureza histórica e processual das estruturas familiares, que demandam uma constante reflexão por parte das ciências jurídicas e sociais.

O direito de família contemporâneo, baseado em uma nova abordagem principiológica, está cada vez mais reconhecendo os laços afetivos como um de seus principais fundamentos. Em contrapartida ao avanço tecnológico e às ciências biológicas, a dignidade humana e a afetividade são consideradas elementos essenciais na determinação do vínculo parental, exigindo uma revisão de todos os institutos relacionados ao estabelecimento desses laços, com o objetivo de conferir ao ordenamento jurídico maior consistência, coerência e eficácia.

A emergência de novos arranjos familiares e formas de parentesco, fundamentados nos princípios da liberdade de formação e dissolução familiar e da dignidade da pessoa humana, tem levado as Varas de Família e os Tribunais de todo o país a lidar com situações singulares. Nessas situações, surge constantemente a questão da verdade em relação à filiação e o questionamento sobre qual tipo de parentesco deve predominar em cada caso específico.

Da mesma forma que na Psicanálise, ou mais precisamente, fundamentado em construções psicanalíticas, o Direito de Família contemporâneo também busca compreender a paternidade/maternidade como uma função, atividade ou serviço que os pais devem exercer na vida dos filhos. Dessa maneira, o critério jurídico para estabelecer a paternidade/maternidade também considera essa perspectiva funcional. Esse cenário possibilitou uma distinção crucial entre as figuras dos genitores biológicos e dos pais, resultando na necessidade de proteção de duas situações sociais distintas, ambas de importância jurídica. Essas situações são abrangidas pelo tradicional direito de filiação e pela mais recente construção do direito ao conhecimento da origem genética, considerado um direito personalíssimo que integra a identidade e a personalidade dos indivíduos.

A liberdade de constituição familiar, que não apenas permitiu a dissolução do casamento – introduzida pela Lei do Divórcio em 1977 -, mas também possibilitou a formação de famílias de maneira informal e sua dissolução de forma igualmente informal, deu origem a um fenômeno social amplamente difundido em nossa realidade atual: as famílias recompostas. Estas apresentam cada vez mais complexas ramificações jurídicas, especialmente no que se refere à definição dos papéis parentais e ao exercício do poder familiar, indicando uma mudança no último paradigma de nossa cultura jurídica: a biparentalidade, que está sendo substituída pelo que chamamos de multiparentalidade. Esse novo fenômeno jurídico também encontra respaldo nas concepções de socioafetividade, que se tornaram um novo impulsionador na definição de relações parentais.

A doutrina geralmente reconhece a existência de parentesco socioafetivo quando são comprovados os requisitos que caracterizam a posse de estado de filho, tais como nome, convivência e reputação. Embora a posse de estado seja um meio eficaz para demonstrar o vínculo afetivo entre pais e filhos adotivos, ela por si só não é capaz de estabelecer esse vínculo, uma vez que, como se sabe, a posse de estado é apenas um meio de prova subsidiário e, portanto, não confere status jurídico por si só.

A essência da socioafetividade reside no efetivo exercício da autoridade parental, ou seja, é quando alguém que não é o genitor biológico assume as responsabilidades necessárias para criar e educar os filhos menores, com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento de suas personalidades, independentemente dos laços de sangue que normalmente impõem essa obrigação legal. Portanto, nesse novo vínculo de parentesco, não é a simples condição de ser pai ou mãe que confere a titularidade da autoridade parental e o dever de exercê-la em benefício dos filhos menores. É o próprio exercício dessa autoridade parental, manifestado através de ações concretas como cuidar, educar e assistir à prole, que estabelece o vínculo jurídico da parentalidade.

A diversidade de laços familiares na família contemporânea é definida principalmente pelo amor e pela afetividade, em contraste com a concepção tradicional de família, na qual os laços consanguíneos, independentemente do afeto, predominam. No contexto da família mosaico, o elemento afetivo é crucial para sua existência, exigindo dos seus membros uma capacidade extraordinária de adaptação, considerando que muitos deles vêm de experiências familiares anteriores, construídas ou desconstruídas, e, portanto, trazem consigo um conjunto de valores oriundos dessas vivências familiares.

Este é um ponto essencial que requer esclarecimento, pois desde que o Direito de Família começou a reconhecer a importância jurídica dos “laços de afeto”, alguns equívocos têm sido cometidos inadvertidamente. O princípio da afetividade atua como um elemento que reestrutura a proteção jurídica no âmbito do Direito de Família, dando mais ênfase à qualidade dos laços estabelecidos nos núcleos familiares do que à forma como essas unidades familiares se apresentam na sociedade. Isso representa uma superação do formalismo das codificações liberais e do patrimonialismo que delas herdamos. Portanto, o princípio da afetividade não impõe um dever de afeto, pois trata-se de uma conduta de foro íntimo, que não pode ser coercitivamente regulada pelo Direito.

É importante ressaltar que o afeto adquire relevância jurídica somente quando é manifestado pelos membros das unidades familiares por meio de ações concretas que caracterizam a convivência familiar. Essas condutas objetivas influenciam os comportamentos e as expectativas mútuas, e, por conseguinte, contribuem para o desenvolvimento da personalidade dos membros da família. São os laços afetivos que viabilizam o desenvolvimento de uma convivência familiar cotidiana, que é o verdadeiro catalisador para a formação da personalidade dos membros do núcleo familiar. É nessa convivência que eles encontram entre si os elementos essenciais para a construção de sua dignidade e autonomia.

Dessa forma, o sistema jurídico não pode demandar de indivíduos demonstrações de amor e afeto, pois não se trata disso, mas sim de uma situação na qual os pais são cobrados pelo correto cumprimento de suas responsabilidades para com o desenvolvimento dos filhos. É importante observar que, durante muito tempo, muitos pais deixaram de expressar afeto e carinho para com seus filhos, porém desempenharam a função de autoridade (seja com autoritarismo ou não) que lhes competia, permitindo que seus filhos se integrassem socialmente.

Afirmamos que a prática dos deveres inerentes ao poder familiar resulta em efeitos jurídicos ligados à socioafetividade, os quais estabelecem vínculos parentais irrevogáveis e definitivos. Assim, o que verdadeiramente estabelece a paternidade e a maternidade é o exercício da autoridade parental. A definição de pai e de mãe deriva dessa conduta, que é fonte de responsabilidade e obrigações para o Direito de Família. A adoção desse critério como determinante do parentesco socioafetivo emerge como uma alternativa objetiva para comprovar e reconhecer a existência de vínculos dessa natureza, especialmente por evitar que o reconhecimento da socioafetividade dependa de critérios metafísicos, emocionais e subjetivos, como a presença de afeto.

Portanto, são situações em que os filhos podem reconhecer não apenas em seus pais biológicos, mas também em terceiros, a figura parental responsável por criá-los e educá-los. Não abordar esse fenômeno, que chamamos de multiparentalidade, pode representar uma clara violação do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. Nessas circunstâncias, a presença e convivência com todas essas figuras são essenciais e devem ser amplamente protegidas pela ordem jurídica. O cerne da autoridade parental reside substancialmente no direito e dever de convívio entre pais e filhos, pois é na convivência e na relação diária entre eles que ocorrem os atos de educar, criar e assistir. Não se trata de relações que se excluem mutuamente, mas sim de relações complementares. O paradigma plural contemporâneo abandonou a perspectiva de exclusão; agora, trata-se da multiplicidade de papéis que são todos válidos em uma relação parental, independentemente de serem de paternidade e/ou maternidade.

Uma vez dissociada a função parental da ascendência biológica, e considerando que a paternidade e a maternidade são atividades voltadas para o desenvolvimento dos filhos menores, a realidade social brasileira tem evidenciado que essas funções podem ser exercidas por “mais de um pai” ou “mais de uma mãe” simultaneamente. Isso ocorre principalmente no contexto dinâmico e na interação das relações interpessoais em famílias recompostas, onde é inevitável a participação do padrasto/madrasta nas responsabilidades inerentes ao poder parental. Eles convivem diariamente com a criança, participam dos conflitos familiares, dos momentos de alegria e de celebração.

A multiparentalidade assegura aos filhos, que convivem na prática com várias figuras parentais, a proteção legal de todos os efeitos decorrentes tanto dos laços biológicos quanto dos afetivos. Como evidenciado, em alguns casos, essas formas de parentesco não são mutuamente exclusivas, e não haveria razão para serem, especialmente se essa restrição priva os menores, presumivelmente vulneráveis, de proteção adequada.

Dessa forma, caso ocorra a interrupção da convivência familiar com qualquer uma das figuras parentais – seja ela baseada em laços biológicos, presumidos ou afetivos -, o menor terá à disposição mecanismos legais capazes de proteger seus direitos fundamentais, especialmente delineados para preservar a oportunidade de seu desenvolvimento integral. Isso porque, por meio da convivência e do cuidado diário, eles se tornaram dependentes da assistência fornecida por cada uma dessas figuras, tanto em termos materiais quanto em questões existenciais, resultando em efeitos semelhantes aos do parentesco.

É importante destacar como ponto fundamental que a abordagem de multiparentalidade proposta visa proteger integralmente os interesses do menor, como decorrência do Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente, assim como da Doutrina da Proteção Integral. Isso implica agregar em torno do menor todas as pessoas que desempenharam papéis parentais em sua vida e, portanto, tornaram-se responsáveis por fornecer tanto assistência material quanto orientação moral. Desconsiderar o fenômeno da multiparentalidade pode resultar em violação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, privando-os de convivência familiar e do apoio moral e material daqueles que efetivamente desempenharam papéis parentais ao criar, educar e assistir. E não considerar isso apenas por uma adesão a um paradigma codificado anteriormente não é justificativa suficiente para ignorar a diretriz constitucional de proteção abrangente dos menores.

Conforme discutido, a multiparentalidade introduz um novo paradigma no direito parental brasileiro. Para que isso se concretize, no entanto, são necessárias alterações no registro de nascimento. No entanto, o registro não deve ser um obstáculo para sua implementação, pois sua função é refletir a realidade concreta; e, se essa realidade se manifesta no fato de várias pessoas desempenharem papéis parentais na vida dos filhos, o registro deve refletir essa realidade.O registro deve ser ajustado para essa nova realidade, incluindo espaço para mais de um pai ou mais de uma mãe, para que, ao ser formalizado, reconheça todos os efeitos dessa filiação.

Diante desse cenário, não há razões para que o Direito não reconheça a multiparentalidade como um fato jurídico, pois, frequentemente, é a alternativa que melhor protege a criança inserida em famílias reconstituídas. Nestas, os dois pais ou duas mães representam verdadeiras figuras parentais, cuja ausência pode acarretar danos desnecessários à criança, simplesmente devido à adesão a concepções antiquadas que já não correspondem à realidade contemporânea.

A análise dos impactos legais da multiparentalidade revelou que, ao contrário do que muitas vezes se supõe, não existem obstáculos práticos nas famílias com múltiplos pais ou mães que não possam ser resolvidos pelos profissionais do direito, em conformidade com os princípios constitucionais, utilizando as ferramentas atualmente disponíveis e apoiando-se nas interpretações já estabelecidas em outras áreas pela doutrina e jurisprudência brasileiras.

 

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