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ArtigosHerança digital no Direito Sucessório

Com o advento das tecnologias digitais, surgiu um fenômeno relativamente recente e complexo no campo do direito sucessório: a herança digital. Enquanto a transmissão de bens após a morte é uma prática antiga, a questão específica dos ativos digitais como parte do patrimônio de um indivíduo ainda é objeto de debates e controvérsias. Ainda não há consenso sobre a natureza jurídica dos bens armazenados virtualmente e se eles podem ser considerados como parte do patrimônio de uma pessoa falecida. Essa falta de clareza jurídica cria desafios significativos para a gestão e transferência desses ativos digitais. Diante dessa lacuna legal, surge a necessidade de explorar a viabilidade jurídica de reconhecer os bens digitais como parte integrante do patrimônio e estabelecer mecanismos para a sua transmissão após a morte. Isso envolve a análise de questões como a propriedade dos ativos digitais, os direitos sucessórios dos herdeiros e a privacidade do falecido.

 No âmbito do sistema jurídico do Brasil, o Direito Civil é a área do direito que abrange as interações jurídicas, incluindo direitos e obrigações, entre pessoas físicas e jurídicas no contexto civil. Portanto, é o responsável por regular toda a vida de um ser sujeito de direitos, porque guia-o desde o nascimento até pós morte, quando se dá início a sucessão dos bens.

Fábio Ulhoa Coelho conceitua que o “direito das sucessões cuida de um dos meios de transmissão, que é a morte da pessoa física”, porque como o patrimônio não pode ficar sem titular, ao falecer, deve ser transferido para outras pessoas, no caso, os herdeiros. Dessa forma, conforme disposto no art. 1.784, Código Civil, entende-se que “aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”. Assim, fica claro que todos os direitos e obrigações são passíveis de herança, com exceção daqueles que possuem caráter personalíssimo, uma vez que se extinguem com o falecimento do titular. (DINIZ, 2012. p.28)

Acrescenta-se, que o art. 1.829, inciso I[1], do Código Civil, traz uma ordem de vocação hereditária.

Em outras palavras, a herança tem sua função social lavrada na Constituição Federal, art. 5°, inciso XXX[2].

 

HERANÇA DIGITAL

 

Ao abordar o direito sucessório, é fundamental reconhecer a relevância da história e evolução da internet, a fim de compreender plenamente a interligação estabelecida entre: sucessões e bens digitais.

Os bens jurídicos digitais referem-se a um conjunto de dados codificados, que podem ser processados por dispositivos eletrônicos, ou seja, tais dados podem ser armazenados digitalmente.

Com a chegada do mundo digital, surgem novas formas de patrimônio, que envolvem uma infinidade de informações, guardadas em serviços de armazenamento em nuvem, redes sociais, blogs, aplicativos de músicas, fotos, e-mails, entre outros.

Por ser algo relativamente “novo”, surge um questionamento: qual destino a ser dado para os bens digitais após o óbito do titular?

O questionamento levantado é de extrema importância, uma vez que a preservação dos ativos digitais é de interesse para os sucessores e a sociedade, garantindo ao indivíduo a capacidade de transferir seus bens para seus herdeiros. Além disso, preservar o patrimônio digital, significa também resguardar a identidade de um determinado período, lugar ou cultura.

Ademais, bens digitais são os chamados bens intangíveis, que são gradualmente inseridos na internet por um usuário e consistem em informações de natureza pessoal que possuem alguma utilidade para ele, independentemente de possuírem conteúdo econômico ou não. (ZAMPIER, 2021, p. 63-64)

Nesse diapasão, Moisés Fagundes Lara afirma que:

Todo esse conteúdo digital, todo esse mundo virtual deve ser preservado, até mesmo como um tesouro para as gerações futuras, desde que autorizado pelas pessoas envolvidas e preservadas as identidades dos interlocutores, quando houver, ou mesmo, tendo que se manter sigilo desses conteúdos por certo tempo, a exemplo do que é feito com os documentos oficiais nos Estados Unidos da América. (LARA, 2016)

Do ponto de vista normativo, Carlos Alberto Rohrmann acredita que “uma importante inovação do Código Civil foi estender o conceito de bem móvel às ‘energias que tenham valor econômico’. É inegável que os arquivos digitais de computador são ‘energia armazenada’[…]”, o qual refere-se ao art. 83, inciso I, CC. (ROHRMANN, 2005, p. 195)

Portanto, considerando que os arquivos digitais representam uma forma de energia armazenada, é válido considerar o acervo digital como um conjunto de bens móveis para fins legais. Essa perspectiva reconhece a natureza dinâmica e transferível dos ativos digitais, proporcionando uma base legal para sua proteção e transferência de propriedade.

Todavia, em pesquisas a doutrinas, nota-se que há divergências referente a transmissão integral da herança digital. Isso ocorre, principalmente, devido aos bens digitais, que possuem uma natureza jurídica complexa, incluindo aspectis existenciais e patrimoniais- exitenciais.

Na doutrina, dois entendimentos sobre o tema têm se firmado. De acordo um primeiro posicionamento, haveria a transmissão de todos os conteúdos como regra, exceto se houvesse manifestação de vontade do próprio usuário em vida em sentido diverso, na esteira dos fundamentos utilizados pelo Bundesgerichtshof – BGH. Uma segunda corrente doutrinária defende a intransmissibilidade de alguns conteúdos, sobretudo quando houver violação a direitos da personalidade. (HONORATO; LEAL, 2021, p. 144)

Observa-se, que há dois entendimentos doutrinários, portanto, justifica a divergência existente.

Terra, Oliva e Medon (2021, p. 58) também acreditam que há dois entendimentos doutrinários existentes, os quais são: a transmissibilidade, que ocorre com a transmissão da herança digital seguindo os mesmos princípios da herança convencional. Assim, ocorre de forma imediata, em conformidade com o princípio de Saisine, e é uma transmissão irrestrita, o que significa que todos os bens que compõem o patrimônio digital podem ser incluídos no inventario.

Identificam-se três principais fundamentos para negar a transmissibilidade absoluta: (i) a preservação da privacidade e intimidade tanto do falecido como de quem tenha com ele se relacionado; (ii) a colisão de interesses entre o de cujus e seus herdeiros, que podem vir a demonstrar ‘interesses puramente

econômicos em comercializar informações íntimas do falecido sob a forma de publicações e biografias póstumas ou em manter ativo o perfil do morto, explorando o nome e imagem do parente falecido’; e, por fim, (iii) a violação à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações, materializada

na ‘quebra na confiança legítima dos usuários no sigilo das conversas estabelecidas no mundo digital, pois a existência de senha de acesso às contas traz em si uma expectativa maior de sigilo. (TERRA; OLIVA; MEDON, 2021, p. 58-59)

O outro entendimento é a intransmissibilidade, que não são todos os bens digitais que podem ser transmitidos aos sucessores, ou seja, os bens digitais de natureza existencial ou patrimonial-existencial, não farão parte. (TERRA; OLIVA; MEDON, 2021, p.58-59).

Em relação aos bens digitais de natureza patrimonial que possuem valor econômico, pode-se inferir que eles podem ser incluídos no inventário, a menos que o falecido tenha manifestado o contrário. Portanto, o entendimento é que, se o titular falecido não mencionar no testamento a destinação de seu acervo digital patrimonial, esse acervo poderá ser transmitido aos herdeiros.

Flumignan S. e Flumignan W. (2019, p. 289) constataram que os perfis de redes sociais podem ser utilizados tanto para fins econômicos quanto recreativos, e em alguns casos, até mesmo para ambos simultaneamente. Dependendo da forma como essas redes sociais são utilizadas, elas podem se tornar um negócio lucrativo para as pessoas, transformando-se em um valioso ativo digital.

Marques e Barretto (2018, p. 7) destacam que a própria plataforma do Youtube encoraja ativamente seus usuários a produzirem vídeos, uma vez que o valor que um usuário pode obter está diretamente ligado ao número de visualizações de seus vídeos. Em outras palavras, uma pessoa que possui um canal no Youtube que atenda aos critérios de monetização terá uma receita monetária determinada pela quantidade de vezes que outros usuários assistiram seus vídeos, mesmo que esses vídeos sejam antigos.

Além da valoração do bens digitais patrimoniais, tem-se os direitos autorais. Alguns artistas deixam músicas gravadas e são lançadas após seu falecimento.

A lei nº 9.610, de 19 de fevereiro 1998, é a legislação dos direitos autorais. Ela estabelece que o autor possui direitos morais, bem como patrimoniais sobre a criação. Assim, confirma a possibilidade de sucessão de tais bens.

O art. 24[3] expõe os direitos morais do autor. O parágrafo §1, garante aos sucessores os direitos morais, dispostos nos incisos I a IV.

Apesar dos sucessores possuírem os mesmos direitos morais estabelecidos ao autor, também serão detentores de direitos patrimoniais por 70 (setenta) anos após o falecimento do autor, conforme art. 41[4] da lei nº 9.610.

É fundamental realizar uma análise precisa do conteúdo deixado pelo falecido, uma vez que sua natureza pode variar entre conteúdo patrimonial, personalíssimo ou intelectual.

No caso de uma obra intelectual e intangível, ela seria respaldada pela Lei de Direitos Autorais e, consequentemente, tratada de acordo com suas disposições legais. Isso implica que tanto o autor quanto seus herdeiros teriam direitos morais e patrimoniais sobre essa obra, pelos mesmos prazos estabelecidos na lei. Essa abordagem difere da aplicação estipulada pelo Código Civil, o qual delimita a transmissibilidade de bens patrimoniais por meio da sucessão legal.

Portanto, fica evidente que a sucessão dos bens digitais deve ser realizada com o devido cuidado e consideração, seja seguindo a sucessão legal estabelecida ou respaldada pelos preceitos da Lei de Direitos Autorais.

 

Referências

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil, v. 5: Família. Sucessões. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2014 p. 245.

MARQUES, Gutenberg Lima; BARRETTO, Anderson Paes. Youtubers Brasileiros: da autoexposição à monetização em lojas virtuais. Revista Eletrônica de Ciência Administrativa, V. 4. nº 1. Jul. 2018. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/331315514_Youtubers_Brasileiros_da_autoexposicao_a_monetizacao_em_lojas_virtuais

ZAMPIER, Bruno. Bens digitais: cybercultura, redes sociais, e-mails, músicas, livros, milhas aéreas, moedas virtuais. 2. ed. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021.

LARA, Moisés Fagundes. Herança Digital. Porto Alegre: Edição do Autor, 2016.

ROHRMANN, Carlos Alberto. Curso de direito virtual; Belo Horizonte: editora del Rey, 2005. p.195.

HONORATO, Gabriel; LEAL, Livia Teixeira. Exploração econômica de perfis de pessoas falecidas: reflexões jurídicas a partir do caso Gugu Liberato. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, v. 23, p. 155-173.

TERRA, Aline de Miranda Valverde; OLIVA, Milena Donato; MEDON, Filipe. Acervo digital: controvérsias quanto à sucessão causa mortis. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; LEAL, Livia Teixeira (coord.). Herança digital: controvérsias e alternativas. Indaiatuba: Foco, 202.

FLUMIGNAN, Silvano José Gomes; FLUMIGNAN, Wévertton Gabriel Gomes. Herança Digital: barreiras e possíveis soluções. In: DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de; MACIEL, Renata Mota (coord.). Direito & Internet IV: Sistema de Proteção de Dados Pessoais. São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 287- 301.

 

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[1] Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III – ao cônjuge sobrevivente;

IV – aos colaterais.

[2]Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXX – é garantido o direito de herança;

[3] Art. 24. São direitos morais do autor:

I – o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra;

II – o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra;

III – o de conservar a obra inédita;

IV – o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra;

V – o de modificar a obra, antes ou depois de utilizada;

VI – o de retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem;

VII – o de ter acesso a exemplar único e raro da obra, quando se encontre legitimamente em poder de outrem, para o fim de, por meio de processo fotográfico ou assemelhado, ou audiovisual, preservar sua memória, de forma que cause o menor inconveniente possível a seu detentor, que, em todo caso, será indenizado de qualquer dano ou prejuízo que lhe seja causado.

  • 1º Por morte do autor, transmitem-se a seus sucessores os direitos a que se referem os incisos I a IV.

[4] Art. 41. Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil.

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