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ArtigosExplorando Caminhos: Os princípios e práticas da justiça restaurativa como uma abordagem alternativa ao sistema de justiça criminal tradicional

A emergência, não apenas no âmbito brasileiro, de um conjunto de procedimentos judiciais ou extrajudiciais que incorporam negociação, conciliação, mediação e arbitragem é um fenômeno notável. Dentro desse panorama, destaca-se a justiça restaurativa, cuja disseminação global é impulsionada por uma série de motivos compartilhados. Estes incluem: a crise de legitimidade do sistema penal, a busca por abordagens alternativas à criminalidade (ou conflito), e as demandas das vítimas por uma participação mais ativa no processo. Nesse contexto, procura-se examinar os argumentos a favor e contra esse modelo, considerando tanto a expansão da rede de controle penal quanto a promoção do acesso à justiça. Além disso, analisamos as especificidades envolvidas na implementação desse modelo no Brasil, levando em conta as características da cultura jurídica nacional.

Desde os anos 70 do século passado, inúmeros pesquisadores e analistas sociais têm desafiado as formas tradicionais de resolução de conflitos associadas ao Estado moderno. Eles têm também sugerido alternativas e examinado criticamente as experiências concretas de informalização, desjudicialização, mediação e arbitragem que vêm surgindo em várias partes do mundo. Isso ocorre principalmente devido à crise na administração da justiça, provocada pelo crescente envolvimento do Estado na regulação dos conflitos e acordos entre diferentes classes e grupos sociais. Esse fenômeno tem levado à crescente juridificação e judicialização da vida social contemporânea.

Diante do aumento exponencial de litígios, da judicialização dos novos direitos sociais e do crescente pedido de intervenção do Judiciário em áreas anteriormente regidas por relações tradicionais de hierarquia e autoridade, o sistema de justiça revela-se progressivamente incapaz de lidar de maneira satisfatória com essa multiplicidade de demandas. Isso se reflete tanto no aumento da demora e dos custos quanto na inadequação do tratamento dado a essa emergente conflituosidade social.

No contexto do sistema de justiça penal, as abordagens associadas ao interacionismo simbólico e à criminologia crítica foram pioneiras em questionar os efeitos negativos gerados pelos mecanismos de controle penal institucionalizados. Tais abordagens destacaram como tais mecanismos frequentemente resultavam na marginalização e estigmatização de indivíduos, incluindo criminosos, pessoas com doenças mentais ou pertencentes a minorias religiosas e raciais. Com o surgimento da sociologia da conflituosidade, a pesquisa sociológica gradualmente desviou-se da simples preocupação com o comportamento desviante em si e passou a focar nas atividades de controle social exercidas pelo Estado. Esse movimento foi influenciado pela crítica marxista ao estrutural-funcionalismo e pela preocupação weberiana com questões de poder e dominação.

Frente à crise na administração da justiça, tem-se observado, nas últimas décadas, um significativo aumento nas formas alternativas de resolução de conflitos. Em vários países, surgem conjuntos de mecanismos judiciais ou extrajudiciais que recorrem à negociação, conciliação, mediação e arbitragem. A análise empírica das instâncias e processos de resolução de conflitos informalizados deve considerar sua dimensão institucional, o nível de formalismo e a natureza dos processos decisórios envolvidos.

No contexto da justiça restaurativa, sua expansão em várias nações é atribuída a uma série de motivos comuns, como a crise de legitimidade do sistema penal, a busca por abordagens alternativas ao crime (ou conflito) e as demandas das vítimas, entre outros. Ao discutir a disseminação da justiça restaurativa na Espanha, Larrauri (2004) refere-se a fatores de natureza jurídica e sociológica. No primeiro grupo, incluem-se a existência de legislação europeia que promove o uso da justiça restaurativa e experiências de diferentes países que a adotam. Entre os fatores sociológicos, destacam-se a crise de legitimidade do sistema penal tradicional, o impacto das vítimas e suas reivindicações, a nova concepção do crime (como um conflito que causa dano a alguém e não apenas uma violação da lei) e a mudança do papel do Estado.

Uma crítica frequente aos mecanismos de justiça restaurativa é o temor do risco de expansão da rede de controle (netwidening), pois há preocupação de que isso não sirva para retirar pessoas do sistema formal, mas sim para atrair pessoas para o novo sistema que está sendo estabelecido. A adoção da justiça restaurativa com o objetivo de reduzir o uso do sistema penal poderia ter um efeito contraproducente, uma vez que suas práticas poderiam ser aplicadas a situações e grupos que de outra forma não teriam entrado em contato com o sistema penal. Casos que normalmente resultariam em uma simples advertência policial ou seriam encaminhados para outros setores que não o sistema criminal, ao serem direcionados para a justiça restaurativa, correriam o risco de serem envolvidos no sistema penal caso não se chegue a um acordo no processo restaurativo ou se o acordo não for cumprido pelo ofensor.

Independentemente disso, em um cenário no qual a grande maioria dos conflitos sociais de natureza criminal não são levados ao sistema de justiça, o que alimenta a sensação de insegurança e impunidade, e onde o padrão de judicialização é predominantemente associado à criminalidade violenta, sem uma atenção adequada à vítima e sem contribuir efetivamente para a prevenção de novos casos, há uma justificativa para a experimentação de um novo modelo de administração de conflitos. Esse modelo se mostra especialmente relevante para lidar com situações de proximidade envolvendo conhecidos.

O risco de ampliação da rede também pode ser desencadeado por outros fatores: a) devido à prioridade atribuída ao sistema penal para determinar quais casos são adequados para participar de um processo restaurativo; b) pela falta de consideração dos acordos alcançados nas conferências restaurativas pelo juiz no momento de determinar a pena; c) porque os processos restaurativos não são estabelecidos como uma alternativa à pena de prisão se forem aplicados na execução da pena privativa de liberdade.

Para evitar tais efeitos, é crucial estabelecer critérios claros para encaminhar casos do sistema penal tradicional aos programas restaurativos. Esses critérios devem determinar quais casos são adequados para encaminhamento e quais devem ser evitados. É essencial que haja uma vítima identificada, a infração tenha uma relevância significativa (o que exclui casos triviais ou aqueles com informações insuficientes sobre o fato e suas circunstâncias), o reconhecimento do ocorrido (não necessariamente uma confissão legalmente definida) e a participação não seja proibida para reincidentes. Outros critérios devem ser estabelecidos pelos próprios programas restaurativos, e não pelo sistema de justiça, para evitar a discricionariedade no encaminhamento dos casos, entre outras consequências negativas.

Adicionalmente, é necessário desenvolver diretrizes que determinem que os acordos restaurativos sejam levados em consideração no momento da sentença judicial. Isso visa garantir que o acordo não seja simplesmente adicionado à sentença criminal, evitando assim violações ao princípio do bis in idem. Esse procedimento deve ser adotado nos casos em que não seja viável extinguir a punibilidade apenas por meio de acordo extrajudicial.

Considerando esses problemas e objetivos, é essencial realizar avaliações contínuas da justiça restaurativa. Estas avaliações devem destacar, entre outros aspectos, o sucesso de sua aplicação pela quantidade de indivíduos que foram desviados do sistema de justiça criminal, o que se reflete na redução do número de processos e na diminuição do uso de medidas penais.

Além de elaborar estratégias para combater o risco de ampliação da rede de controle penal por meio dos critérios de encaminhamento de casos para os programas restaurativos, a justiça restaurativa pode contribuir para reduzir a resposta punitiva do sistema penal e, ao mesmo tempo, aumentar o acesso à justiça. O acesso à justiça é um princípio fundamental – um dos direitos humanos mais básicos – em um sistema jurídico moderno e igualitário que busca efetivar, e não apenas proclamar, os direitos de todos. Assegurar o acesso à justiça de maneira equitativa, portanto, implica em tornar realidade os direitos garantidos pela Constituição.

Entre os desafios identificados para o acesso à justiça penal estão os relacionados às “possibilidades das partes”, ou seja, às vantagens e desvantagens que alguns litigantes possuem, como: a) Maior disponibilidade de recursos financeiros, o que potencialmente amplia a capacidade de uma parte de apresentar seus argumentos de maneira mais eficaz; b) Capacidade de reconhecer um direito e iniciar uma ação (o que, no contexto do sistema criminal, implica em reconhecer-se como vítima de um crime e buscar o sistema penal); c) Falta de disposição psicológica para envolver-se em processos judiciais, o que pode ocorrer devido a uma desconfiança generalizada em relação aos advogados – especialmente comum entre as classes menos privilegiadas – ou por outros motivos, como procedimentos complexos, formalidades excessivas, ambientes intimidantes (como os tribunais), e figuras consideradas opressoras (como juízes e advogados), que podem fazer com que aqueles que poderiam ou deveriam recorrer ao sistema jurídico sintam-se perdidos e desconectados em um ambiente estranho.

Ampliar o acesso à justiça por meio da justiça restaurativa implica também em evitar que respostas violentas se tornem predominantes. Essas respostas podem surgir tanto de formas privadas de lidar com conflitos quanto do próprio sistema penal, que muitas vezes responde de maneira violenta ao conflito ao impor uma pena ao ofensor, muitas vezes violando seus direitos, como a dignidade humana e a integridade física e moral.

Os mecanismos de justiça restaurativa integram a chamada “terceira onda” de reformas da justiça, sendo a primeira a preocupar-se em garantir o acesso individual à justiça para os segmentos sociais menos favorecidos economicamente e socialmente. Nesse sentido, surge a necessidade de criar alternativas de resolução de conflitos não apenas mais acessíveis e rápidas, mas também mais compreensíveis e alinhadas com a realidade cotidiana dos envolvidos nos conflitos. Diante da crise de legitimidade do sistema penal mencionada, do aumento da violência na sociedade brasileira e da crise na administração da justiça, observa-se a proliferação de formas alternativas de administração de conflitos. Estas buscam ampliar o acesso à justiça e, assim, promover a equidade econômica e social, fortalecendo a democracia. Tais objetivos estão entre os declarados pelo Ministério da Justiça em um programa que visou mapear os meios alternativos de resolução de conflitos, tanto públicos quanto privados, no país, com o intuito de fomentar o desenvolvimento e aprimoramento desses programas.

Os juizados especiais, apesar de suas limitações e desafios, conseguiram mitigar a discricionariedade dos delegados – que muitas vezes agiam como mediadores informais e despenalizavam delitos na prática – e aumentar o acesso à justiça para uma parte da população anteriormente excluída do alcance do Judiciário. Nesse sentido, pode-se estabelecer uma relação entre a justiça restaurativa e os juizados criminais, pelo menos na intenção expressa da Lei 9.099/95 de introduzir mecanismos informais de resolução de conflitos no sistema de justiça criminal. O aspecto crucial é que a justiça restaurativa busca não apenas aumentar o exercício do poder punitivo, mas sim ampliar o acesso à justiça de qualidade. Isso é alcançado pela desvinculação do sistema penal.

Dessa reflexão, percebe-se que o processo de implementação dos programas de justiça restaurativa não apenas envolve o confronto entre diversas características culturais, que podem levar à sua adaptação, mas também abre a possibilidade de reforçar aspectos culturais já existentes. As práticas restaurativas têm significado e dependem de um contexto em que o conflito é encarado como uma oportunidade para reconstrução e estabelecimento de novas relações e compreensões, sendo sua resolução uma forma de construir a ordem social.

A implementação dessas práticas em contextos culturais onde o conflito é visto como uma ameaça à ordem social pode transformá-las em ferramentas para manter essa ordem e “conciliar” os conflitos. Em ambos os cenários, as práticas restaurativas são utilizadas como uma maneira de gerenciar conflitos e promover a pacificação das relações, mas as motivações por trás de sua implementação e os significados atribuídos aos resultados podem diferir.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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