EnglishPortugueseSpanish

ArtigosEntendendo a violência obstétrica: impactos na saúde e nos direitos das mulheres e desafios para a integridade e autonomia feminina.

Hoje em dia, o nascimento se tornou um campo de tensão entre a visão da mulher como figura central e autônoma, protagonista do processo e responsável por suas próprias escolhas, e a influência da tecnologia científica, que o converte em um evento médico-hospitalar, colocando a mãe na posição de paciente. Assim, é indiscutível que o parto representa um momento intenso e de significância extrema para a sociedade, sendo o meio primordial para a continuidade da vida humana; para a família, visto que a chegada de um novo membro concretiza aspirações culturais e sociais; e, naturalmente, para a mulher, já que constitui um acontecimento marcante tanto em termos de experiência humana quanto biopsicossocial.

Assim, a violência obstétrica manifesta-se no contexto hospitalar, predominantemente perpetrada pelos profissionais de saúde, que se aproveitam da vulnerabilidade da paciente devido ao seu estado gestacional, estabelecendo uma relação de domínio violento. Nesse sentido, a violência obstétrica configura-se como uma transgressão do direito à saúde das mulheres. De acordo com dados que projetam estimativas sobre o assunto, cerca de 25% das mulheres que deram à luz em maternidades públicas e privadas no Brasil já foram vítimas de algum tipo de violência obstétrica, em um momento em que deveriam ser protagonistas e receber cuidados adequados por parte dos profissionais de saúde.

Desse modo, a violência obstétrica é caracterizada pela usurpação do corpo e dos processos reprodutivos da mulher por parte dos profissionais de saúde, manifestando-se através de tratamentos violentos, abuso de medicalização e patologização dos processos naturais. Isso resulta na diminuição da autonomia da paciente e na restrição de sua capacidade de decidir livremente sobre seu corpo e sexualidade. Esta pode se manifestar de diversas maneiras, desde violência psicológica, como discriminação de qualquer tipo no momento do parto, até violência física, como ações que resultem em dor (por exemplo, exames de toque realizados para fins didáticos a estudantes da área da saúde). Incluem-se também formas de violência sexual, como a episiotomia, que alguns estudiosos até consideram como uma forma de mutilação genital feminina, entre outras práticas.

Todos os dias, inúmeras gestantes e seus bebês são vítimas de maus-tratos por parte de profissionais da saúde, independentemente de sua função. Essa situação pode começar desde o momento em que a gestante descobre a gravidez e persistir até o pós-parto, exatamente quando ela mais necessita de apoio, pois encontra-se em um estado de vulnerabilidade. Muito disso se dá ao fato de que os hospitais se transformaram em cenários da “obstetrícia moderna”, onde a tecnologia é utilizada não apenas para salvar vidas das parturientes que necessitam, mas também para agilizar o processo de trabalho de parto e, teoricamente, reduzir possíveis riscos à integridade física da paciente. Nos dias de hoje, o parto hospitalizado é mais uma faceta da produção industrial, onde há uma rotina a ser seguida, prazos a serem cumpridos e, se a mulher não completar o trabalho de parto dentro do tempo estipulado, intervenções serão realizadas para garantir que ela dê à luz dentro do prazo determinado.

No Brasil, os índices de morbidade materna e neonatal são significativamente altos. Em 92% dos casos, as causas mais comuns são consideradas evitáveis, o que significa que os profissionais responsáveis poderiam evitar sua ocorrência, uma vez que não estão relacionadas a fatores acidentais. De acordo com a pesquisa conduzida pelo Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna, em 2023 houve o registro de 62.641 óbitos de mulheres no Brasil devido a causas relacionadas ou agravadas pela gravidez[1]. Esses dados abrangem notificações de óbitos maternos totais, incluindo causas diretas, indiretas e não especificadas, em todo o país durante o ano de 2023.

Nos anos 2000, a Assembleia Geral das Nações Unidas formalizou uma série de objetivos com prazos estabelecidos, conhecidos como Objetivos do Milênio (ODM), nos quais a melhoria da saúde das gestantes foi incluída. Embora o país tenha conseguido reduzir a taxa de mortalidade materna, ainda apresenta, em média, 62 mortes para cada 100 mil nascidos vivos, não alcançando as recomendações da Organização Mundial de Saúde – OMS, que estabelece um limite de 35 mortes para cada 100 mil nascidos vivos.

Assim, é necessário investigar os motivos e circunstâncias que contribuem para a ocorrência da violência obstétrica no Brasil, os quais têm impacto nos elevados índices de mortalidade materna.

No âmbito da conduta profissional, observa-se que alguns profissionais de saúde adotam práticas violentas que se tornam institucionalizadas quando realizadas de forma habitual, sendo incorporadas aos procedimentos médico-hospitalares. São perceptíveis os esforços do Ministério da Saúde (MS) na formulação de políticas públicas destinadas à promoção, prevenção e recuperação da saúde da mulher. No entanto, ainda são observadas práticas médicas intervencionistas sem embasamento científico, como a episiotomia associada à sutura conhecida como “ponto do marido”, o uso do fórceps, a administração indiscriminada de ocitocina durante o trabalho de parto, a realização da manobra de Kristeller, e o alto número de cesarianas desnecessárias.

Assim, a violência obstétrica se manifesta como uma dura realidade cotidiana e representa uma violação do direito fundamental à saúde da mulher, privando-a da autonomia, do protagonismo, da individualidade e da privacidade essenciais para um parto humanizado. Esse contexto resulta em impactos negativos na saúde da mulher, fortalece a condição de submissão feminina e reafirma a assimetria na relação médico-paciente.

A experiência da gestação e do parto são momentos únicos na vida das mulheres e demandam assistência especial e humanizada, especialmente por se tratarem de fenômenos fisiológicos com profundo significado sociocultural. Ao examinar historicamente a construção dos direitos fundamentais à saúde da mulher brasileira, observa-se que a temática foi inicialmente introduzida na política nacional no início do século XX, com foco inicial no cuidado durante o ciclo gravídico-puerperal. No entanto, devido a numerosas manifestações em prol dos direitos e da igualdade, as mulheres reivindicaram mudanças na política de saúde para abranger questões além do estado gestacional, como sexualidade, prevenção de doenças e acesso a métodos contraceptivos.

No Brasil, não há uma legislação em vigor que define o conceito de violência obstétrica. Atualmente, existe apenas o Projeto de Lei nº 7633/14, que trata da humanização da atenção à mulher e ao recém-nascido durante o ciclo gravídico-puerperal. O termo “violência obstétrica” teve origem na América Latina por volta de 2000, quando surgiram movimentos sociais em prol do parto humanizado. Ele é frequentemente utilizado de maneira abrangente para descrever desde a assistência ao parto excessivamente medicalizada até a violência física contra a parturiente.

Entretanto, em 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu novas diretrizes que reafirmam o direito da parturiente à escolha de um acompanhante, à posição durante o parto e ao tipo de parto, visando garantir sua saúde e segurança nesse momento crucial. Por meio dessas diretrizes, foram estabelecidos padrões globais de atendimento para gestantes saudáveis, juntamente com estratégias para reduzir o número de intervenções médicas durante o trabalho de parto, reservando-as apenas para casos em que há risco de complicações. Isso se deve ao reconhecimento de que muitas práticas desnecessárias, frequentemente empregadas na ginecologia e obstetrícia, podem causar danos tanto à saúde da mãe quanto do bebê.

Desta maneira, a falta de uma definição legal para a violência obstétrica possibilita a continuidade de práticas invasivas que não apenas descaracterizam o parto natural, mas também promovem a medicalização desse processo e perpetuam a cultura machista e patriarcal existente. Esses são fatores que contribuem para restringir os direitos das mulheres e para torná-las mais vulneráveis.

No panorama global, algumas legislações importantes sobre o tema da violência obstétrica merecem destaque, como a Lei 26.485/2009, da Argentina. Seu artigo 6° define violência obstétrica como aquela praticada por profissionais de saúde, caracterizando-se pela apropriação do corpo e dos processos reprodutivos da mulher, por meio de um tratamento desumanizado, abuso de medicamentos e patologização dos processos naturais. Observa-se que o legislador argentino incorporou a definição de violência obstétrica como uma forma de violência contra a mulher, juntamente com a violência doméstica, institucional, no local de trabalho, reprodutiva e midiática. Portanto, também a reconheceu como resultante de características específicas ligadas ao gênero.

Ademais, a violência obstétrica afeta vítimas pertencentes a grupos vulneráveis, devido à discriminação de gênero. No entanto, essas mesmas vítimas podem também fazer parte de outros grupos discriminados, como aqueles definidos pela cor da pele, renda, entre outros, que acentuam sua condição de risco e, portanto, aumentam a incidência da violência mencionada.

Do ponto de vista dos Direitos Humanos dos Pacientes, a violência obstétrica viola diversos direitos fundamentais, incluindo o direito à vida, o direito de não ser submetido à tortura ou tratamento cruel, o direito ao respeito pela vida privada, o direito à informação, o direito a não ser discriminado e o direito à saúde, os quais serão abordados posteriormente. Portanto, é necessário considerar a violência obstétrica como uma prática que apresenta uma alta probabilidade de violação dos direitos humanos da mulher.

No que diz respeito aos Direitos Humanos dos Pacientes, é importante esclarecer que as responsabilidades do Estado para proteger e proporcionar condições que promovam a vida, para que possa ser desfrutada em sua plenitude máxima, são basicamente divididas em três áreas: o dever de se abster de privar a vida de qualquer ser humano; o dever de investigar e punir, por meio dos instrumentos legais internos, as causas de morte; e o dever de adotar medidas que previnam mortes evitáveis.

A saúde é um meio fundamental para garantir o direito à vida e deve ser assegurada pelo Estado tanto através da abstenção de interferência (não intervenção) quanto da implementação de políticas públicas e da oferta de serviços de saúde de qualidade, visando proteger a vida dos pacientes. Assim, considerando as particularidades da gestação, o direito à vida se desdobra em duas vertentes: o direito à assistência emergencial e eficaz, e o direito à segurança da paciente.

O que se verifica com frequência no Brasil é a violação sistemática e diária do direito à vida das gestantes, evidenciada, por exemplo, pela recusa de internação emergencial em hospitais durante o início do trabalho de parto, entre outras situações que caracterizam a violência obstétrica. A falta de serviços obstétricos emergenciais ou sua negação resulta em aumento da mortalidade e morbidade maternas, o que, por sua vez, configura uma violação do direito à vida ou à segurança e, em determinadas circunstâncias, pode equivaler a tortura ou a tratamento desumano, cruel ou degradante.

Dessa maneira, se houver violação do direito à vida devido à falta de prestação de assistência à saúde de qualidade e eficácia, isso também representará uma violação do direito à segurança do paciente. Assim sendo, é essencial garantir todas as medidas necessárias para promover a segurança do paciente, visando prevenir não apenas erros médicos, como a administração de medicamentos ou procedimentos não prescritos, mas também a conduta inadequada por parte dos profissionais de saúde, que podem se sentir inibidos de realizar atos violentos diante da supervisão do acompanhante ou do próprio paciente.

Além disso, é importante relembrar que o direito a não ser submetido à tortura ou a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes é um direito absoluto. Os Estados não podem invocar circunstâncias excepcionais, como ameaça de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública, como justificativa para a prática de tortura. Portanto, a caracterização do tratamento desumano ou degradante inclui situações como a intervenção médica realizada de forma forçada ou coercitiva, a recusa de cuidados de saúde ou a prestação de cuidados de saúde de qualidade inferior com base em discriminação, e a administração de tratamento médico de maneira humilhante.

Consequentemente, observa-se que a violência obstétrica constitui uma grave violação do direito a não ser submetido à tortura e a tratamento cruel ou degradante.

Por todo o exposto, é certo dizer que a prática médica, focalizada na ginecologia e obstetrícia, frequentemente envolve procedimentos invasivos e antiquados que não apenas violam os direitos das mulheres, mas também têm impactos negativos na saúde delas e da comunidade, contribuindo para a ocorrência da violência obstétrica. A sequência de intervenções desnecessárias, a falta de respeito pelos direitos das parturientes, a restrição ao acesso das gestantes ao conhecimento sobre os aspectos do parto, juntamente com a violência física, verbal e psicológica, são exemplos de práticas que contradizem tanto as diretrizes de saúde estabelecidas pela OMS quanto às normas de proteção à mulher, deixando esses indivíduos em situação de vulnerabilidade.

Nesse contexto, percebe-se que a discussão sobre esse assunto é justificada pela necessidade de restaurar a autonomia, a segurança e o bem-estar físico e psicológico das mulheres, garantindo que a gestação e o parto sejam períodos dignos de cuidado e atenção adequados. Portanto, compreender a violência obstétrica como um fenômeno complexo e prejudicial para vários aspectos da saúde feminina, juntamente com a identificação das práticas que a caracterizam e sua definição em termos legais, torna-se crucial para propor medidas que visem combater tanto a naturalização da violação dos direitos das mulheres quanto a perpetuação de práticas intervencionistas que possam colocar em risco a saúde e a segurança femininas.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

 

AGUIAR, Janaína Marques de; D‟OLIVEIRA, Ana Flávia Pires Lucas. Violência institucional em maternidades públicas sob a ótica das usuárias.

ALBUQUERQUE, Aline. Direitos humanos dos Paciente. Curitiba: Juruá, 2016

Brasil. Lei nº 11.108, de 7 de abril de 2005. Altera a Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, para garantir às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de  parto,  parto  e  pós-parto  imediato,  no  âmbito  do  Sistema  Único  de  Saúde -SUS. Diário Oficial da União;

Coelho  EBS,  Calvo  MCM,  Coelho  CC.  Saúde  da  mulher:  um  desafio  em  construção.  Florianópolis: Editora da UFSC; 2006. p. 205-16

Dengo VAR, Silva RDS, Souza SRRK, Aldrighi JD, Wall ML, Cancela FZV. A episiotomia na percepção de puérperas. Cogitare Enferm 2016; 21(3): 01-08

Mattar  R,  Aquino  MMA,  Mesquita  MRS.  A  prática  da  episiotomia  no  Brasil.  Rev  Bras  Ginecol Obstet. 2007;29(1):1-2

Muniz BMV, Barbosa RM. Problematizando o atendimento ao parto: cuidado ou violência? In: Convenção Internacional de Saúde Pública, Havana, Cuba. 2012:3-7

Viana IO,  Quintão  A,  Andrade  CRA,  Ferreira  FA,  Dumont  RD,  Ferraz  FO,  et  al.  Episiotomia e suas complicações: revisão da literatura. Rev Med Minas Gerais 2011; 21(2):43-46

________________________________

[1]  SIM. Sistema de informações sobre mortalidade: Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna. Disponível em: http://plataforma.saude.gov.br/mortalidade/materna/

Deixe um comentário

Your email address will not be published. Required fields are marked *

https://barretodolabella.com.br/wp-content/uploads/2021/01/logotipo.png

Filiais nas principais cidades do Brasil // Estamos onde nosso cliente está

Todos os direitos reservados

Leia nossa política de privacidade

Desenvolvido por Design C22