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ArtigosARE 1.309.642: possibilidade de afastar o regime da separação obrigatória de bens em favor da dignidade dos septuagenários

1 – Introdução

O recurso extraordinário com agravo 1.309.642, com repercussão geral (Tema 1.236) discute a constitucionalidade da norma prevista no art. 1.641, II, do Código Civil de 2002, o qual estabelece que nos casamentos ou uniões estáveis em que um dos nubentes for pessoa maior de 70 anos, será obrigatória a separação de bens e, além disso, se tal norma também deve ser aplicada às uniões estáveis.

A separação de bens é prevista como obrigatória para os septuagenários, não existindo a hipótese de afastá-la ou optar por pactuar outro regime de bens senão o definido pelo art. 1.641 do CC. Destaca-se que o objetivo do referido regime de bens é separar e impedir a comunicação entre os patrimônios dos cônjuges, não admitindo hipótese de celebração de pacto antenupcial em sentido contrário ao estabelecido pela norma.

Desse modo, o presente artigo pretende explorar o julgamento do recurso extraordinário com agravo 1.309.642, que adicionou uma novidade no que se refere ao regime de bens no casamento e união estável de indivíduos maiores de 70 anos, trazendo a posição e os apontamentos da doutrina, que já considerava essa norma inconstitucional há um tempo considerável e acabou por colocar em voga o direito à autonomia, dignidade humana e autodeterminação dos idosos.

 

2 – Regime da separação obrigatória de bens

 O regime de bens tem por objetivo estabelecer uma série de regras relacionadas ao patrimônio resultante da entidade familiar formada a partir do casamento ou união estável, que é equipada à instituição do casamento. Nesse sentido, o CC/02 traz entre os arts. 1.639 a 1.688, as regras referentes ao casamento e união estável, equiparada ao casamento.

De maneira geral, os nubentes poderão escolher o regime de bens para o seu casamento ou ainda, desde que não transgridam a ordem pública, mesclar regras de outros regimes, sendo necessária a realização de pacto antenupcial sempre que o regime escolhido não for o da comunhão parcial de bens, que é o regime legal e automático no caso de não definição pelos nubentes acerca do regime adotado, bem como em casos de nulidades e ineficácia no momento da escolha. [1]

Entretanto, existem algumas hipóteses específicas em que os nubentes não terão a opção de eleger um regime de bens por mera liberalidade, tendo que obedecer a imposição de um regime de bens pré-estabelecido, conforme estabelece o CC/02:

Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:

I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;

II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos;

III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.[2]

O regime da separação obrigatória de bens, também conhecido como regime da separação legal de bens, normatizado pelo CC/02 tem “a finalidade do regime é separar os patrimônios dos cônjuges. Evitar comunhão patrimonial. O legislador optou, inclusive, por estabelecer que o cônjuge casado na separação obrigatória não herdará com o descendente (art. 1.829, I, CC).”[3]

Nesse contexto, fica vedado qualquer regime de bem diverso ao da separação obrigatória de bens para os septuagenários. Essa norma tem o objetivo de impedir a comunicação entre os bens no casamento em que um dos cônjuges é maior de 70 anos, estabelecendo que não haverá comunicação e que a administração dos bens será realizada por cada um dos cônjuges, exceto na hipótese de flexibilização gerada pela Súmula n. 377 do STF, que estabelece que mesmo na separação legal os bens adquiridos de forma onerosa na constância do casamento poderão se comunicar. Nesse sentido, Flávio Tartuce (2023) defende:

Como regra básica do regime, não haverá a comunicação de qualquer bem, seja posterior ou anterior à união, cabendo a administração desses bens de forma exclusiva a cada um dos cônjuges (art. 1.687 do CC). Justamente por isso, cada um dos cônjuges poderá alienar ou gravar com ônus real os seus bens mesmo sendo imóveis, nas hipóteses em que foi convencionada a separação de bens. Em relação à separação legal ou obrigatória, há comunicação de alguns bens, conforme se retira da Súmula n. 377 do STF.

 A determinação do código pela separação obrigatória de bens no caso de pessoas maiores de 70 anos explicitava a intenção do legislador de proteger a pessoa idosa e seus herdeiros de eventual casamento por interesse. Entretanto, há uma forte corrente jurisprudencial e doutrinária que sustenta a inconstitucionalidade da norma, haja vista que trata a pessoa idosa como incapaz para o casamento, de maneira que “tal previsão não protege o idoso, mas seus herdeiros, tendo feição estritamente patrimonialista, na contramão da tendência do Direito Privado contemporâneo, de proteger a pessoa humana”[4].

Essa corrente jurisprudencial e doutrinária ganhou ampla notoriedade, o que culminou no reconhecimento doutrinário da inconstitucionalidade dessa norma, conforme explicita o Enunciado n. 125, da I Jornada de Direito Civil, que propôs a revogação do comando do art. 1.641, II do Código Civil. Nesse sentido, Tartuce (2023):

Reconhecendo doutrinariamente a inconstitucionalidade, o Enunciado n. 125, da I Jornada de Direito Civil, propõe a revogação do comando. Constam de suas justificativas: “a norma que torna obrigatório o regime da separação absoluta de bens em razão da idade dos nubentes (qualquer que seja ela) é manifestamente inconstitucional, malferindo o princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República, inscrito no pórtico da Carta Magna (art. 1.º, inc. III, da CF/1988). Isso porque introduz um preconceito quanto às pessoas idosas que, somente pelo fato de ultrapassarem determinado patamar etário, passam a gozar da presunção absoluta de incapacidade para alguns atos, como contrair matrimônio pelo regime de bens que melhor consultar seus interesses”. Na mesma esteira, são as palavras de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho: “o que notamos é uma violência escancarada ao princípio da isonomia, por conta do estabelecimento de uma velada forma de interdição parcial do idoso”.

           

3 – ARE 1.309.642 – obrigatoriedade de separação de bens nos casamentos e uniões estáveis de pessoas maiores de 70 anos

            Nesse sentido, com a atuação do Instituto Brasileiro de Direito de Família como amicus curiae, o Supremo Tribunal Federal julgou o Recurso Extraordinário com Agravo – ARE 1309642 (Tema 1236), negando provimento e fixando, por unanimidade, o entendimento de que “nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoas maiores de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no artigo 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes, mediante escritura pública.”

Ementa: Direito Constitucional. Recurso extraordinário com agravo. Regime de bens aplicável no casamento e na união estável de maiores de setenta anos. 1. Possui caráter constitucional a controvérsia acerca da validade do art. 1.641, II, do CC/02, que estabelece ser obrigatório o regime da separação de bens no casamento da pessoa maior de setenta anos, e da aplicação dessa regra às uniões estáveis. 2. Questão de relevância social, jurídica e econômica que ultrapassa os interesses subjetivos da causa. 3. Repercussão geral reconhecida.

Decisão: O Tribunal, por unanimidade, apreciando o tema 1.236 da repercussão geral, negou provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do Relator, Ministro Luís Roberto Barroso (Presidente). Em seguida, foi fixada a seguinte tese: “Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no art. 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes, mediante escritura pública”. Plenário, 1º.2.2024.[5]

 

O Ministro Relator Luís Roberto Barroso apontou que a obrigatoriedade em razão da idade até então estabelecida pelo dispositivo impede que pessoas capazes para a vida civil pratiquem atos civis de maneira livre ao impedir que elas definam qual o regime de casamento ou união estável desejam eleger. Além disso, advertiu também que tal norma utiliza idosos como instrumento de satisfação dos herdeiros, indo contra o princípio da autonomia, uma vez que estabelece uma diferenciação no regime de bens em razão da idade, ainda que essa pessoa seja capaz.

Nota-se que a decisão proferida pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal representa o compromisso com o mandamento constitucional do art. 3º, IV que estabelece que constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos, inclusive por idade ao reconhecer que a pessoa idosa, desde que capaz, deve ter o direito de autonomia garantido, uma vez que a imposição de um regime de bens representa uma ameaça à sua dignidade e privilegia o aspecto patrimonialista em detrimento da pessoa humana.

Importante frisar que os septuagenários que desejarem se casar ou fazer união estável em outro regime deverão manifestar esse desejo por meio da escritura pública, que deverá ser firmada em cartório. Outrossim, ficou definido que essas pessoas que já estão casadas ou em união estável pelo regime da separação obrigatória de bens poderá alterar o regime legal mediante autorização judicial, no caso do casamento, ou manifestação em escritura pública, no caso da união estável, só produzindo efeitos futuros em relação à divisão dos bens.

 

5 – Conclusão

Em suma, a regra que o art. 1.641, II do Código Civil está em consonância com o Estatuto do Idoso no que se refere à autonomia das pessoas com mais de 60 anos, bem como com o próprio pacto constitucional, que estabelece o tratamento igualitário e livre de preconceito em relação às pessoas idosas. Assim sendo, o reconhecimento do status de cogência dessa norma apresentava violação ao direito à liberdade e à autodeterminação da pessoa idosa, que deve ter o direito de fazer suas próprias escolhas e tomar decisões sobre sua própria vida, levando em consideração seus próprios desejos e preferências.

Portanto, o julgamento do ARE 1.309.642/SP restabeleceu o pacto constitucional ao definir que pessoas maiores de 70 anos, desde que capazes, podem estabelecer o regime de bens que preferem adotar em seu casamento ou união estável, garantindo o respeito à autonomia e à dignidade da pessoa idosa. Isso reconhece o direito de controlar suas próprias decisões, em vez de priorizar o aspecto patrimonialista que não beneficia em nada o idoso e coloca como preferência os interesses patrimoniais dos herdeiros em detrimento de importantes direitos fundamentais dos septuagenários.

 

6 – Referências

ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO IBDFAM. STF decide que maiores de 70 anos podem afastar regime de separação de bens em casamentos e uniões estáveis. Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/11527/STF+decide+que+maiores+de+70+anos+podem+afastar+regime+de+separa%C3%A7%C3%A3o+de+bens+em+casamentos+e+uni%C3%B5es+est%C3%A1veis. Acesso em: 19 fev. 2024.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília/DF, 1988.

BRASIL. Lei nº 10.406/2002. Código Civil. Brasília/DF, 2002.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE 1.309.642/SP. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. Tribunal Pleno. Data de julgamento: 30/09/2022.

IBDFAM. Regime legal de bens: aspectos patrimoniais e não patrimoniais. Disponível em: <https://ibdfam.org.br/artigos/1384/Regime+legal+de+bens%3A+aspectos+patrimoniais+e+n%C3%A3o+patrimoniais#:~:text=Da%20liberdade%20de%20escolha,escolhido%20n%C3%A3o%20for%20o%20legal/>. Acesso em: 19 fev. 2024.

OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Volume Único. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2023. E-book. ISBN 9786559646654. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559646654/. Acesso em: 19 fev. 2024.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Separação de bens em casamento de pessoas acima de 70 anos não é obrigatória, decide STF. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=526043&ori=1#:~:text=O%20Supremo%20Tribunal%20Federal%20. Acesso em: 19 fev. 2024.

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume Único. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2023. E-book. ISBN 9786559646999. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559646999/. Acesso em: 19 fev. 2024.

 

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[1] IBDFAM. Regime legal de bens: aspectos patrimoniais e não patrimoniais. Disponível em: <https://ibdfam.org.br/artigos/1384/Regime+legal+de+bens%3A+aspectos+patrimoniais+e+n%C3%A3o+patrimoniais#:~:text=Da%20liberdade%20de%20escolha,escolhido%20n%C3%A3o%20for%20o%20legal./>. Acesso em: 19 fev. 2024.

[2] BRASIL. Lei nº 10.406/2002. Código Civil. Brasília/DF, 2002.

[3] OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Volume Único. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2023, p. 1.395.

[4] TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume Único. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2023, p. 1.227.

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE 1.309.642/SP. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. Data de julgamento: 30/09/2022.

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