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ArtigosA teoria do adimplemento substancial nos contratos de alienação fiduciária

O artigo em apreço visa destacar o atrito entre um suposto direito adquirido pelo consumidor face à medida coercitiva disponibilizada ao credor fiduciário para resolver o contrato.

A alienação fiduciária é popularmente conhecida como uma aquisição de um bem mediante financiamento, sendo o mesmo dado como garantia da relação jurídica. Neste sentido, o Decreto-Lei n. 911, de 1969, em seu art. 1.º, explica:

A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal.

Em outras palavras, o bem somente está sob o domínio da pessoa que o financiou. A instituição que viabilizou essa conquista possui a prerrogativa de reivindicar a satisfação desse contrato seja via judicial, seja via extrajudicial, quando estiver caracterizado inadimplemento ou moras das obrigações contratuais.

Assim sendo, o decreto em questão prevê em seu art. 3.º a possibilidade da Ação de Busca e Apreensão do objeto que se encontrar nesta situação, sendo, ainda, um procedimento bastante célere, ante a concessão da liminar para busca do bem.

Por conseguinte, aqueles que, por situações diversas da do momento da celebração do contrato, deixam de cumprir com as obrigações estabelecidas nele amparam-se judicialmente no valor do produto à vista e o valor já pago, valendo-se da Teoria do Adimplemento Substancial para auferir a quitação.

O Enunciado n. 361, da IV Jornada de Direito Civil reconhece o adimplemento substancial como um instrumento limitador do art. 475, do Código Civil, que trata dos direitos do lesado face ao inadimplemento, por seu fundamento na ponderação da função social do contrato e no princípio da boa-fé objetiva.

O jurista Flávio Tartuce, ademais, frisa que a teoria tem que ser aplicada consoante ao caso em contrato, interpretando a função social do contrato mediante a busca da preservação da autonomia privada e da conservação do negócio jurídico. (2015)

Todavia, essa teoria não é aplicada ao contrato de alienação fiduciária em garantia, pois, conforme o Superior Tribunais de Justiça, além de não haver previsão legal, a teoria é incompatível com os termos da lei especial, por restituir ao devedor fiduciante o bem cujas parcelas estão pendentes.

Posto isso, faz-se necessária a exposição da ementa a seguir:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. CONTRATO DE FINANCIAMENTO DE VEÍCULO, COM ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA REGIDO PELO DECRETO-LEI 911/69. INCONTROVERSO INADIMPLEMENTO DAS QUATRO ÚLTIMAS PARCELAS (DE UM TOTAL DE 48). EXTINÇÃO DA AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO (OU DETERMINAÇÃO PARA ADITAMENTO DA INICIAL, PARA TRANSMUDÁ-LA EM AÇÃO EXECUTIVA OU DE COBRANÇA), A PRETEXTO DA APLICAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. DESCABIMENTO. 1. ABSOLUTA INCOMPATIBILIDADE DA CITADA TEORIA COM OS TERMOS DA LEI ESPECIAL DE REGÊNCIA. RECONHECIMENTO. 2. REMANCIPAÇÃO DO BEM AO DEVEDOR CONDICIONADA AO PAGAMENTO DA INTEGRALIDADE DA DÍVIDA, ASSIM COMPREENDIDA COMO OS DÉBITOS VENCIDOS, VINCENDOS E ENCARGOS APRESENTADOS PELO CREDOR, CONFORME ENTENDIMENTO CONSOLIDADO DA SEGUNDA SEÇÃO, SOB O RITO DOS RECURSOS ESPECIAIS REPETITIVOS (REsp n. 1.418.593/MS). 3. INTERESSE DE AGIR EVIDENCIADO, COM A UTILIZAÇÃO DA VIA JUDICIAL ELEITA PELA LEI DE REGÊNCIA COMO SENDO A MAIS IDÔNEA E EFICAZ PARA O PROPÓSITO DE COMPELIR O DEVEDOR A CUMPRIR COM A SUA OBRIGAÇÃO (AGORA, POR ELE REPUTADA ÍNFIMA), SOB PENA DE CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE NAS MÃOS DO CREDOR FIDUCIÁRIO. 4. DESVIRTUAMENTO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL, CONSIDERADA A SUA FINALIDADE E A BOA-FÉ DOS CONTRATANTES, A ENSEJAR O ENFRAQUECIMENTO DO INSTITUTO DA GARANTIA FIDUCIÁRIA. VERIFICAÇÃO. 5. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. …

  1. A teoria do adimplemento substancial tem por objetivo precípuo impedir que o credor resolva a relação contratual em razão de inadimplemento de ínfima parcela da obrigação. A via judicial para esse fim é a ação de resolução contratual. Diversamente, o credor fiduciário, quando promove ação de busca e apreensão, de modo algum pretende extinguir a relação contratual. Vale-se da ação de busca e apreensão com o propósito imediato de dar cumprimento aos termos do contrato, na medida em que se utiliza da garantia fiduciária ajustada para compelir o devedor fiduciante a dar cumprimento às obrigações faltantes, assumidas contratualmente (e agora, por ele, reputadas ínfimas). A consolidação da propriedade fiduciária nas mãos do credor apresenta-se como consequência da renitência do devedor fiduciante de honrar seu dever contratual, e não como objetivo imediato da ação. E, note-se que, mesmo nesse caso, a extinção do contrato dá-se pelo cumprimento da obrigação, ainda que de modo compulsório, por meio da garantia fiduciária ajustada. 4.1 É questionável, se não inadequado, supor que a boa-fé contratual estaria ao lado de devedor fiduciante que deixa de pagar uma ou até algumas parcelas por ele reputadas ínfimas mas certamente de expressão considerável, na ótica do credor, que já cumpriu integralmente a sua obrigação , e, instado extra e judicialmente para honrar o seu dever contratual, deixa de fazê-lo, a despeito de ter a mais absoluta ciência dos gravosos consectários legais advindos da propriedade fiduciária. A aplicação da teoria do adimplemento substancial, para obstar a utilização da ação de busca e apreensão, nesse contexto, é um incentivo ao inadimplemento das últimas parcelas contratuais, com o nítido propósito de desestimular o credor – numa avaliação de custo-benefício – de satisfazer seu crédito por outras vias judiciais, menos eficazes, o que, a toda evidência, aparta-se da boa-fé contratual propugnada. 4.2. A propriedade fiduciária, concebida pelo legislador justamente para conferir segurança jurídica às concessões de crédito, essencial ao desenvolvimento da economia nacional, resta comprometida pela aplicação deturpada da teoria do adimplemento substancial.
  2. Recurso Especial provido.

(REsp n. 1.622.555/MG, relator Ministro Marco Buzzi, relator para acórdão Ministro Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, julgado em 22/2/2017, DJe de 16/3/2017.)

 

Em que pese o tema seja corriqueiramente discutido pelos magistrados brasileiros, o presente acórdão mostra-se de grande valia aos operadores do direito consumerista. Isto é, ilustra o procedimento de busca e apreensão e, de forma aprofundada, realça questões sociais acerca do instrumento e a incidência o instituto ora apresentado.

Por isso, é imperioso reiterar, segundo o julgado, que a utilização da Teoria do Adimplemento Substancial demonstra-se incoerente com os princípios contratuais, sobretudo a boa-fé. Sendo irônico ao devedor requerer o “perdão” porque a quantia da dívida é irrisória e, ainda assim, não pode arcar.

Em contrapartida, a instituição financeira que foi suporte na conquista da pessoa, além de suportar o não cumprimento daquele contrato, é submetida aos ônus decorrentes do procedimento em tela e aos efeitos em relação de diversos outros contratos causados por sua banalização.

Conclui-se, então, que inviável a aplicação da Teoria aos contratos de alienação fiduciária em garantia, tendo em vista a sua capacidade nociva a segurança jurídica do credor.

 

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BRASIL. Tribunal do Distrito Federal e Territórios. Jurisprudência em Temas. Teoria do adimplemento substancial nos contratos com cláusula de alienação fiduciária – inaplicabilidade. 2020. Disponível em: < https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/jurisprudencia-em-detalhes/busca-e-apreensao/inaplicabilidade-da-teoria-do-adimplemento-substancial-aos-contratos-de-alienacao-fiduciaria > Acesso em: 30 de janeiro de 2024

BRASIL. Decreto-lei N. 911. Brasília, DF: Presidência da República, 1969. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/1965-1988/Del0911.htm#art3 > Acesso em: 30 de janeiro de 2024

BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Enunciado 361. IV Jornada de Direito Civil. Brasília, DF. 2013. Disponível em: < https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/472 >.  Acesso em: 30 de janeiro de 2024

TARTUCE, Flavio. A teoria do adimplemento substancial na doutrina e jurisprudência. Disponível em: < https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/180182132/a-teoria-do-adimplemento-substancial-na-doutrina-e-na-jurisprudencia >. Acesso em: 30 de junho de 2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgrInt no AResp 2052910/PR. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça, 2023. Disponivel em: < https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=202200093244 >. Acesso em: 31 de janeiro de 2024.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.622.555/MG. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça, 2017. Disponivel em: < https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1569290&num_registro=201502797328&data=20170316&formato=PDF >. Acesso em: 31 de janeiro de 2024.

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