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ArtigosA suspensão compulsória ex officio de ações individuais, na pendência de ações coletivas de mesma temática

A atividade econômica moderna e a distribuição de bens em série conduzem à impossibilidade de o Poder Judiciário atender satisfatoriamente o crescente número de processos que, muitas das vezes, repetem situações idênticas, acarretando a tramitação paralela de grande número de ações similares em seu objeto e na razão de seu ajuizamento.

Dentro desse cenário, é certo o desenvolvimento de padrões generalizados, seja no âmbito do consumo, da cultura ou da política. O processo de urbanização atingiu níveis jamais vistos, de forma que o setor terciário passou a desempenhar um papel de protagonismo e o espaço para a iniciativa individual, por outro lado, reduziu-se. Tal conjunto de fatores caracteriza a chamada “sociedade de massa”[1].

Nesse contexto, não bastasse o reconhecimento de novos direitos, verifica-se a proliferação da litigância em grande escala, inclusive se expandindo diariamente.

Por vezes, têm-se ações individuais e coletivas com mesma temática tramitando concomitante, submetidas a uma mesma infraestrutura judicial limitada e insuficiente, obstando, em última circunstância, o próprio acesso à justiça sob a perspectiva da celeridade processual e da segurança jurídica.

É certo que no modelo individual de processo civil, os titulares do direito ajuízam ações com a finalidade de satisfazer objetivos próprios, sendo que os efeitos da coisa julgada vinculam apenas as partes que compõem a relação jurídica processual.

Já no modelo coletivo, incidem as normas próprias do microssistema de processo coletivo, valendo destacar que a coisa julgada tem o condão de ultrapassar os limites subjetivos, abrangendo todos os direitos individuais relacionados, mormente para beneficiá-los.

No entanto, a tramitação de processos com objeto similar acaba afetando a efetividade e à segurança do sistema processual, considerando que o incremento no número de demandas gera grande lentidão na sua condução, tendo em vista que o limitado número de juízes e servidores não consegue atender adequadamente o volume de trabalho que lhes é apresentado.

Sobre o tema, destaca-se o entendimento de Raimundo Cândido Júnior[2]:

“Com a multiplicação de ações individuais, que tramitam perante diversos órgãos judiciais, por vezes espalhados por todo o território nacional, e diante da ausência, nos países da civil law, do sistema vinculativo de precedentes (staredecisis), os juízes chegam, com frequência, a conclusões e decisões variadas e até mesmo antagônicas. […] A miscelânea de pronunciamentos, liminares e definitivos, diferenciados e antagônicos, do Poder Judiciário, passam a ser fonte de descrédito para a própria função judicante, ensejando enorme insegurança jurídica para a sociedade. Consequentemente, quando ocorre tal anomalia, a função jurisdicional deixa de cumprir a sua missão de pacificar as relações sociais.”

Conquanto a existência de ação coletiva em curso não obste a propositura de ação individual, visto que isso afrontaria o direito de ação previsto na Constituição Federal (artigo 5º, XXXV), o ajuizamento da demanda individual, nesse caso, acarreta renúncia tácita aos efeitos da eventual procedência da ação coletiva, nos termos preconizados na legislação.

Cumpre salientar o quanto consignado pelo artigo 104 do CDC:

“Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva”.

Ao se realizar uma interpretação sistemática da legislação consumerista observa-se que a demanda coletiva não enseja qualquer tipo de restrição ao direito que a parte tem de manejar uma ação individual, podendo, nos termos do citado artigo, o interessado optar por pedir a suspensão do seu processo, ou prosseguir com a sua lide de forma independente, sendo que, caso a última hipótese seja a escolhida, a eventual procedência da ação coletiva não lhe favorecerá.

No entanto, o risco da tramitação concomitante de processos com objetos similares, além da redundância e ineficiência, tem a possibilidade de gerar decisões contraditórias que não poderiam coexistir no ordenamento jurídico, sendo certo que, segundo leciona Kazuo Watanabe[3]:

“a solução que seria mais apropriada, em nosso sentir, na conformidade das ponderações acima desenvolvidas, seria a proibição de demandas individuais referidas a uma relação jurídica global incindível. Porém, a suspensão dos processos individuais poderá, em termos práticos, produzir efeitos bem próximos da proibição, se efetivamente for aplicada pelo juiz da causa.”

Logo, possibilitar, conforme disposto no artigo 104 do CDC, que a parte possa “optar” em requerer ou não a suspensão da sua ação individual distorce o objetivo da tutela coletiva, mormente a universalidade da jurisdição, garantia de isonomia, efetividade e eficiência.

Notadamente, tramitando ação coletiva atinente à macrolide geradora de processos multitudinários, mostra-se necessária a suspensão dessas ações individuais, no aguardo do julgamento da ação coletiva.

Afinal, patente que a coletivização da demanda, seja no polo ativo, seja no polo passivo, é um dos meios mais eficiente para proporcionar o acesso à justiça, tendo em vista que, além de reduzir os custos, consubstancia-se em instrumento para a concentração de litigantes em um polo, evitando-se, assim, os problemas decorrentes dos diversos procedimentos similares.

Em tal circunstância, o resultado da macrolide poderá influenciar diretamente no âmbito da ação individual, razão pela qual as provas a serem produzidas na ação coletiva serão aproveitadas ao menos, em tese, ante a identidade de origem fática, de modo que se mostra prudente aguardar o julgamento da lide coletiva em prol do interesse público, da segurança jurídica e da efetividade da tutela jurisdicional, afastando-se, assim, a possibilidade de decisões conflitantes

Não bastasse isso, o sobrestamento dos feitos individuais até a solução do litígio coletivo possibilita a melhor adoção de medidas que proporcionam a imediata reparação de danos urgentes, bem como para evitar que, em se tratando de danos de grande intensidade, com capacidade de ensejar a insolvência dos responsáveis, apenas os primeiros demandantes venham a ser indenizados, além de fornecer subsídios relevantes para uma sentença mais adequada ao caso, em atenção ao princípio da efetividade processual.

Por tais razões, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 1.110.549/RS, analisado sob a sistemática dos repetitivos, firmou entendimento no sentido de que “ajuizada ação coletiva atinente a macrolide geradora de processos multitudinários, suspendem-se as ações individuais, no aguardo do julgamento da ação coletiva[4].

Destaca-se que a ordem judicial acima mencionada entendeu pela manutenção de decisão judicial proferida pelas instâncias ordinárias que determinaram a suspensão de ação judicial individual em prol da extensão da interpretação da tese jurídica a ser definida em ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal.

A tese central da decisão prolatada pelo Superior Tribunal de Justiça no emblemático julgado repousa na identificação de repetição acerca da macrolide, ou seja, pretensões que abarquem interesses ou direitos que, a despeito da possibilidade de tutela individual, possibilitam a identidade de fundamentos e motivos, cujos contornos ultrapassam os autos dos processos, atingindo outros feitos.

De acordo com a decisão tomada pelo Superior Tribunal de Justiça no aludido caso, o titular de direito individual não terá mais qualquer faculdade em prosseguir com o andamento de sua ação individual, sendo certo que a suspensão será determinada de ofício pelo magistrado.

Vale destacar que essa orientação foi tomada sem lastro em disposição legal expressa no ordenamento jurídico, porém com fulcro em uma interpretação sistemática e teleológica de princípios jurídicos e regras, possibilitando a conclusão pela relação de prejudicialidade entre demandas coletivas e individuais com mesma temática.

Tal entendimento, tornou devida a suspensão do andamento de milhares de processos individuais para o aguardo de prévio julgamento da mesma tese jurídica de fundo neles contida, objeto da ação coletiva.

Nesse viés, busca-se solução uniforme e otimização da atuação do Poder Judiciário, especificamente com a melhor ordenação dos processos multitudinários, sendo certo que o Superior Tribunal de Justiça reafirmou o citado entendimento no julgamento do REsp 1879314/PR, decidindo que:

“(…) nos casos de processos individuais multitudinários, faculta-se ao Juízo a suspensão, no aguardo do julgamento da macrolide objeto do processo de ação coletiva, o que privilegia o interesse público de preservar a efetividade da jurisdição, que se frustra com a inundação de milhares de demandas idênticas”[5].

Notadamente, deve-se buscar uma harmônica convivência entre ações coletivas e ações individuais com objeto similar, razão pela qual infactível se pensar na possibilidade de decisões conflitantes e falta de racionalidade na prestação jurisdicional, mostrando-se imperiosa a suspensão dessas demandas individuais até que a ação coletiva seja definitivamente julgada.

Desta feita, o mecanismo de suspensão compulsória ex officio de ações individuais, na pendência de ações coletivas de mesma temática, com lastro na similitude de fatos e fundamentos jurídicos, e com escopo na primazia da ação coletiva idêntica, surge como um instrumento eficiente de enfrentamento de inúmeras demandas que possuem o mesmo objeto, mostrando-se em conformidade com o movimento atual da processualística em torno isonômica, equânime e célere solução de conflitos.

 

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. Carmen C. Varriale, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luís Guerreiro Pinto Cacais e Renzo Dini. 11.ª ed. Brasília: Editora UNB, 1998.

BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Brasília: Senado Federal, 1990.

STJ. Recurso Especial nº 1.110.549/RS, Rel. Min. Sidnei Beneti, julgado em 28.10.2009, publicado em 14.12.2009.

STJ. Recurso Especial nº 1879314/PR, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 29.6.2021, publicado em 1.7.2021.

CANDIDO JUNIOR, Raimundo. A extensão dos efeitos da coisa julgada no processo coletivo: análise da extensão dos efeitos de procedência de sentença coletiva em ação individual improcedente não suspensa e transitada em julgado. 2015. 136 f. Tese (doutorado em direito). Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.

 

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[1] BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. Carmen C. Varriale, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luís Guerreiro Pinto Cacais e Renzo Dini. 11.ª ed. Brasília: Editora UNB, 1998, p. 1211.

[2] CANDIDO JUNIOR, Raimundo. A extensão dos efeitos da coisa julgada no processo coletivo: análise da extensão dos efeitos de procedência de sentença coletiva em ação individual improcedente não suspensa e transitada em julgado. 2015. 136 f. Tese (doutorado em direito). Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015. Acesso em 10.9.2022.

[3] WATANABE, Kazuo. Direito processual coletivo e o anteprojeto de Código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 160

[4] STJ. Recurso Especial nº 1.110.549/RS, Rel. Min. Sidnei Beneti, julgado em 28.10.2009, publicado em 14.12.2009.

[5] STJ. Recurso Especial nº 1879314/PR, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 29.6.2021, publicado em 1.7.2021.

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