EnglishPortugueseSpanish

ArtigosA Ratio decidendi no controle concentrado e o necessário diálogo constitucional

  1. Introdução

O objetivo do presente artigo é identificar os contornos constitucionais da vinculação da decisão do Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado de constitucionalidade, cujas feições são diversas do efeito vinculante dos precedentes judiciais classicamente considerados.

Isto é, os precedentes judiciais originários do commom law possuem sua origem, além da necessidade de manutenção da homogeneidade do sistema, no princípio da isonomia, segundo o qual os casos iguais devem receber decisões também iguais. As decisões judiciais proferidas em sede de controle de constitucionalidade, a seu turno, possuem fundamento na suposta supremacia judicial. Traçar um paralelo entre ambos os sistemas é o objetivo do presente artigo

 

  1. A força vinculante das decisões proferidas em sede de controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal

A grande maioria dos articulados que se propõem a discorrer acerca do controle de constitucionalidade no direito brasileiro iniciam a sua jornada buscando as raízes históricas no célebre julgamento do caso Marbury vs. Madison pela Suprema Corte Americana ou, mais remotamente, no julgamento do Doctor Bonham´s Case, julgado em 1610, pela Court of Commom Pleas[1].

Em que pese nosso objetivo seja traçar paralelo entre a força vinculante dos precedentes e a força vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal proferidas em sede de controle concentrado de constitucionalidade, deixaremos de abordar as suas origens históricas, pois o seu exame escaparia dos limites do presente trabalho.

Assim, deve ser de logo destacado que, no direito brasileiro, após a Constituição da República de 1988, a força vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal proferidas em sede de ação de direta de inconstitucionalidade e de ação declaratória de constitucionalidade alcança os demais órgãos do Poder Judiciário e a administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, nos termos do §2º do art. 102, in verbis:

§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal[2].

Não obstante o dispositivo seja claro no sentido de haver a vinculação para os demais órgãos do Poder Judiciário e para o Poder Executivo, a vinculação é “inerente à natureza da decisão proferida na ação direta”, conforme sentenciou o Ministro Carlos Velloso quando do julgamento da Reclamação 1.987[3].

Em outras palavras, ainda que não existisse dispositivo prevendo a vinculação das decisões proferidas em sede de controle concentrado no ordenamento jurídico brasileiro, tal circunstância emanaria da própria natureza da decisão. De fato, outra não poderia ser a conclusão, vez que de nada adiantaria a Constituição da República conferir o poder ao Supremo de declarar determinada lei ou ato normativo inconstitucional e tal decisão não poder reverberar contra todos (eficácia erga omnes) e em face dos próprios Poderes estatais.

Duas importantes observações podem ser extraídas daquele §2º: i) o Constituinte vinculou de forma expressa somente o Poder Judiciário e o Poder Executivo, deixando de fora do efeito vinculante da decisão do Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado o Poder Legislativo; ii) ao se valer da expressão “decisão definitiva de mérito”, parece-nos que o Constituinte quis referir à parte dispositiva da decisão, isto é, nada foi dito em relação às razões determinantes da decisão (a ratio decidendi).

Os problemas afetos à ratio decidendi serão abordados no item posterior, cabendo neste momento o efeito vinculante da decisão em relação aos Poderes do Estado.

Pois bem. Conforme expresso no Texto Constitucional, quando o Supremo Tribunal Federal declarar que determinado ato normativo é inconstitucional ou, ao revés, decidir pela constitucionalidade dele, a sua decisão será oponível a todos os cidadãos, aos demais órgãos do Poder Judiciário (tribunais superiores, tribunais de justiça, tribunais regionais federais, juízes de primeira instância etc) e aos órgãos da administração direta e indireta da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.

Assim, por exemplo, se determinada lei for declarada inconstitucional, tal disposição deverá ser observação em todas as relações jurídicas que a tangenciem, seja essa relação privada ou pública.

A doutrina tradicional e imensamente majoritária entende que ao se dividir o acórdão em relatório, fundamentação e parte dispositiva, somente esta última que carrega em si o poder vinculante. É dizer, para a maioria da doutrina é somente a parte dispositiva da decisão do Supremo Tribunal Federal que vincula “os demais órgãos do Poder Judiciário” e a “administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”, inexistindo, para esta corrente doutrinária, qualquer vinculação em relação às razões que embasaram a decisão.

Com base nessa corrente doutrinária, se uma lei X de determinado Estado for declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal e existir uma lei Y em outro Estado, mas com idêntico conteúdo, gravada com a mesma pecha de inconstitucionalidade, aquela decisão proferida pela Corte em relação à lei X em nada impacta na lei Y, vez que é somente a parte dispositiva que vincula os Poderes Executivo e Judiciário.

Confere estofo a tal posicionamento o próprio Texto Constitucional que expressamente prevê que o que vincula é a “decisão definitiva de mérito”. Decisão aí é entendida como a parte dispositiva do acórdão, a porção que contém o comando quanto à declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma lei X e, consequentemente, a sua expurgação do ordenamento jurídico (quando se pronuncia a sua inconstitucionalidade) ou reafirmação da sua validade (quando se pronuncia a sua constitucionalidade).

Todavia, a nosso sentir, esse posicionamento merece ser objeto de melhor reflexão, sobretudo considerando os estreitamentos dos laços entre os sistemas do civil law e do commom law. É dizer, em tempos atuais em que os precedentes judiciais, sobretudo em face do Código de Processo Civil de 2015, assumem especial relevo a ratio decidendi da decisão do Supremo Tribunal Federal proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade não pode ser simplesmente ignorada.

 

  1. A ratio decidendi nas decisões do STF proferidas em sede de controle concentrado de constitucionalidade

Como visto, o entendimento majoritário é no sentido de que os fundamentos que embasam as decisões do Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado de constitucionalidade não possuem eficácia vinculante, possuindo tal eficácia somente a parte dispositiva da decisão.

Todavia, por tudo o que foi exposto linhas atrás acerca da aplicação dos precedentes judiciais (aplicação da ratio decidendi) no que se refere à necessidade de concreção do princípio da isonomia e da manutenção da integridade de todo o sistema jurídico, tal posicionamento precisa ser revisitado.

Sobre o tema, lembram Marinoni, Mitidiero e Sarlet que em países em que controle de constitucionalidade é reservado a um Tribunal Constitucional, tal o como o é na Alemanha, é atribuído eficácia vinculante aos fundamentos determinantes das decisões (ratio decidendi) proferidas nessa seara.[4]

Em outras palavras, não é o fato de o sistema jurídico de terminado país, a exemplo do Brasil e da Alemanha, possuir as suas fincas no sistema romano-germânico, adeptos do civil law, portanto, que inviabiliza a adoção dos motivos determinantes da decisão com eficácia vinculante.

Até mesmo porque “a força obrigatória ou vinculante dos motivos determinantes da decisão diz respeito exatamente à intenção de se dar unidade à interpretação e à aplicação do direito”[5], já que “os fundamentos, por revelarem o pensamento da Corte, devem obrigar os demais tribunais e juízes, além da administração pública”[6].

Pensar de forma diversa, “estar-se-ia negando a própria razão de ser da eficácia vinculante, cuja gênese não se desliga da necessidade de se atribuir força obrigatória à ratio decidendi ou aos fundamentos determinantes das decisões”[7].

Por outro lado, o Min. Carlos Velloso, no voto proferido na Reclamação n. 1.987, sentenciou que “o efeito vinculante está sujeito a uma limitação objetiva: o ato normativo objeto da ação, o dispositivo da decisão vinculante, não os seus fundamentos”[8]. Permissa vênia, o que o presente trabalho propõe é justamente uma reflexão sobre a possibilidade de se conferir efeito vinculante aos fundamentos da decisão, ou seja, propõe-se a utilização do pronunciamento do Supremo em sede de controle de constitucionalidade como verdadeiro precedente que é, valendo-se da sua ratio decidendi para o balizamento das decisões futuras em casos semelhantes.

Por essa razão, estamos com o firme posicionamento de Marinoni, Mitidiero e Sarlet, segundo os quais “ao se pretender cristalizar o entendimento da Corte, a porção da decisão que deve ser isolada para vincular os julgamentos futuros não está no dispositivo, mas nos motivos determinantes”[9].

Nos parece que o próprio Supremo Tribunal Federal tem percebido a necessidade de agitação do tema. Conforme se observa do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 5.105/DF, a qual tem origem em outra ADI, qual seja, a nº 4.430, cuja ementa encontra-se assim vazada:

Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E ELEITORAL. DIREITO DE ANTENA E DE ACESSO AOS RECURSOS DO FUNDO PARTIDÁRIO ÀS NOVAS AGREMIAÇÕES PARTIDÁRIAS CRIADAS APÓS A REALIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES. REVERSÃO LEGISLATIVA À EXEGESE ESPECÍFICA DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NAS ADIs 4490 E 4795, REL. MIN. DIAS TOFFOLI. INTERPRETAÇÃO CONFORME DO ART. 47, § 2º, II, DA LEI DAS ELEIÇÕES, A FIM DE SALVAGUARDAR AOS PARTIDOS NOVOS, CRIADOS APÓS A REALIZAÇÃO DO PLEITO PARA A CÂMARA DOS DEPUTADOS, O DIREITO DE ACESSO PROPORCIONAL AOS DOIS TERÇOS DO TEMPO DESTINADO À PROPAGANDA ELEITORAL GRATUITA NO RÁDIO E NA TELEVISÃO. LEI Nº 12.875/2013. TEORIA DOS DIÁLOGOS CONSTITUCIONAIS. ARRANJO CONSTITUCIONAL PÁTRIO CONFERIU AO STF A ÚLTIMA PALAVRA PROVISÓRIA (VIÉS FORMAL) ACERCA DAS CONTROVÉRSIAS CONSTITUCIONAIS. AUSÊNCIA DE SUPREMACIA JUDICIAL EM SENTIDO MATERIAL. JUSTIFICATIVAS DESCRITIVAS E NORMATIVAS. PRECEDENTES DA CORTE CHANCELANDO REVERSÕES JURISPRUDENCIAIS (ANÁLISE DESCRITIVA). AUSÊNCIA DE INSTITUIÇÃO QUE DETENHA O MONOPÓLIO DO SENTIDO E DO ALCANCE DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS. RECONHECIMENTO PRIMA FACIE DE SUPERAÇÃO LEGISLATIVA DA JURISPRUDÊNCIA PELO CONSTITUINTE REFORMADOR OU PELO LEGISLADOR ORDINÁRIO. POSSIBILIDADE DE AS INSTÂNCIAS POLÍTICAS AUTOCORRIGIREM-SE. NECESSIDADE DE A CORTE ENFRENTAR A DISCUSSÃO JURÍDICA SUB JUDICE À LUZ DE NOVOS FUNDAMENTOS. PLURALISMO DOS INTÉRPRETES DA LEI FUNDAMENTAL. DIREITO CONSTITUCIONAL FORA DAS CORTES. ESTÍMULO À ADOÇÃO DE POSTURAS RESPONSÁVEIS PELOS LEGISLADORES. STANDARDS DE ATUAÇÃO DA CORTE. EMENDAS CONSTITUCIONAIS DESAFIADORAS DA JURISPRUDÊNCIA RECLAMAM MAIOR DEFERÊNCIA POR PARTE DO TRIBUNAL, PODENDO SER INVALIDADAS SOMENTE NAS HIPÓTESES DE ULTRAJE AOS LIMITES INSCULPIDOS NO ART. 60, CRFB/88. LEIS ORDINÁRIAS QUE COLIDAM FRONTALMENTE COM A JURISPRUDÊNCIA DA CORTE (LEIS IN YOUR FACE) NASCEM PRESUNÇÃO IURIS TANTUM DE INCONSTITUCIONALIDADE, NOTADAMENTE QUANDO A DECISÃO ANCORAR-SE EM CLÁUSULAS SUPERCONSTITUCIONAIS (CLÁUSULAS PÉTREAS). ESCRUTÍNIO MAIS RIGOROSO DE CONSTITUCIONALIDADE. ÔNUS IMPOSTO AO LEGISLADOR PARA DEMONSTRAR A NECESSIDADE DE CORREÇÃO DO PRECEDENTE OU QUE OS PRESSUPOSTOS FÁTICOS E AXIOLÓGICOS QUE LASTREARAM O POSICIONAMENTO NÃO MAIS SUBSISTEM (HIPÓTESE DE MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL PELA VIA LEGISLATIVA). 1. O hodierno marco teórico dos diálogos constitucionais repudia a adoção de concepções juriscêntricas no campo da hermenêutica constitucional, na medida em que preconiza, descritiva e normativamente, a inexistência de instituição detentora do monopólio do sentido e do alcance das disposições magnas, além de atrair a gramática constitucional para outros fóruns de discussão, que não as Cortes. 2. O princípio fundamental da separação de poderes, enquanto cânone constitucional interpretativo, reclama a pluralização dos intérpretes da Constituição, mediante a atuação coordenada entre os poderes estatais – Legislativo, Executivo e Judiciário – e os diversos segmentos da sociedade civil organizada, em um processo contínuo, ininterrupto e republicano, em que cada um destes players contribua, com suas capacidades específicas, no embate dialógico, no afã de avançar os rumos da empreitada constitucional e no aperfeiçoamento das instituições democráticas, sem se arvorarem como intérpretes únicos e exclusivos da Carta da República. 3. O desenho institucional erigido pelo constituinte de 1988, mercê de outorgar à Suprema Corte a tarefa da guarda precípua da Lei Fundamental, não erigiu um sistema de supremacia judicial em sentido material (ou definitiva), de maneira que seus pronunciamentos judiciais devem ser compreendidos como última palavra provisória, vinculando formalmente as partes do processo e finalizando uma rodada deliberativa acerca da temática, sem, em consequência, fossilizar o conteúdo constitucional. 4. Os efeitos vinculantes, ínsitos às decisões proferidas em sede de fiscalização abstrata de constitucionalidade, não atingem o Poder Legislativo, ex vi do art. 102, § 2º, e art. 103-A, ambos da Carta da República. 5. Consectariamente, a reversão legislativa da jurisprudência da Corte se revela legítima em linha de princípio, seja pela atuação do constituinte reformador (i.e., promulgação de emendas constitucionais), seja por inovação do legislador infraconstitucional (i.e., edição de leis ordinárias e complementares), circunstância que demanda providências distintas por parte deste Supremo Tribunal Federal. 5.1. A emenda constitucional corretiva da jurisprudência modifica formalmente o texto magno, bem como o fundamento de validade último da legislação ordinária, razão pela qual a sua invalidação deve ocorrer nas hipóteses de descumprimento do art. 60 da CRFB/88 (i.e., limites formais, circunstanciais, temporais e materiais), encampando, neste particular, exegese estrita das cláusulas superconstitucionais. 5.2. A legislação infraconstitucional que colida frontalmente com a jurisprudência (leis in your face) nasce com presunção iuris tantum de inconstitucionalidade, de forma que caberá ao legislador ordinário o ônus de demonstrar, argumentativamente, que a correção do precedente faz-se necessária, ou, ainda, comprovar, lançando mão de novos argumentos, que as premissas fáticas e axiológicas sobre as quais se fundou o posicionamento jurisprudencial não mais subsistem, em exemplo acadêmico de mutação constitucional pela via legislativa. Nesse caso, a novel legislação se submete a um escrutínio de constitucionalidade mais rigoroso, nomeadamente quando o precedente superado amparar-se em cláusulas pétreas. 6. O dever de fundamentação das decisões judicial, inserto no art. 93 IX, da Constituição, impõe que o Supremo Tribunal Federal enfrente novamente a questão de fundo anteriormente equacionada sempre que o legislador lançar mão de novos fundamentos. 7. O Congresso Nacional, no caso sub examine, ao editar a Lei nº 12.875/2013, não apresentou, em suas justificações, qualquer argumentação idônea a superar os fundamentos assentados pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADIs nº 4430 e nº 4795, rel. Min. Dias Toffoli, em que restou consignado que o art. 17 da Constituição de 1988 – que consagra o direito político fundamental da liberdade de criação de partidos – tutela, de igual modo, as agremiações que tenham representação no Congresso Nacional, sendo irrelevante perquirir se esta representatividade resulta, ou não, da criação de nova legenda no curso da legislatura. 8. A criação de novos partidos, como hipótese caracterizadora de justa causa para as migrações partidárias, somada ao direito constitucional de livre criação de novas legendas, impõe a conclusão inescapável de que é defeso privar as prerrogativas inerentes à representatividade política do parlamentar trânsfuga. 9. No caso sub examine, a justificação do projeto de lei limitou-se a afirmar, em termos genéricos, que a regulamentação da matéria, excluindo dos partidos criados o direito de antena e o fundo partidário, fortaleceria as agremiações partidárias, sem enfrentar os densos fundamentos aduzidos pelo voto do relator e corroborado pelo Plenário. 10. A postura particularista do Supremo Tribunal Federal, no exercício da judicial review, é medida que se impõe nas hipóteses de salvaguarda das condições de funcionamento das instituições democráticas, de sorte (i) a corrigir as patologias que desvirtuem o sistema representativo, máxime quando obstruam as vias de expressão e os canais de participação política, e (ii) a proteger os interesses e direitos dos grupos políticos minoritários, cujas demandas dificilmente encontram eco nas deliberações majoritárias. 11. In casu, é inobjetável que, com as restrições previstas na Lei nº 12.875/2013, há uma tentativa obtusa de inviabilizar o funcionamento e o desenvolvimento das novas agremiações, sob o rótulo falacioso de fortalecer os partidos políticos. Uma coisa é criar mecanismos mais rigorosos de criação, fusão e incorporação dos partidos, o que, a meu juízo, encontra assento constitucional. Algo bastante distinto é, uma vez criadas as legendas, formular mecanismos normativos que dificultem seu funcionamento, o que não encontra guarida na Lei Maior. Justamente por isso, torna-se legítima a atuação do Supremo Tribunal Federal, no intuito de impedir a obstrução dos canais de participação política e, por via de consequência, fiscalizar os pressupostos ao adequado funcionamento da democracia. 12. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade dos arts. 1º e 2º, da Lei nº 12.875/2013.

(ADI 5105, Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 01/10/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-049 DIVULG 15-03-2016 PUBLIC 16-03-2016)

Embora longa e não seja adequado o exame do julgado somente sua ementa, a sua transcrição é de suma importância, pois resume bem os debates que foram travados na Corte sobre o tema.

Em apertadíssima síntese, o caso vertente diz respeito à atuação legislativa após a decisão pela declaração de inconstitucionalidade na ADI 4.430 nos seguintes termos:

[…] i) declarar a inconstitucionalidade da expressão “e representação na Câmara dos Deputados” contida na cabeça do § 2º do art. 47 da Lei nº 9.504/97 e ii) dar interpretação conforme à Constituição Federal ao inciso II do § 2º do art. 47 da mesma lei, para assegurar aos partidos novos, criados após a realização de eleições para a Câmara dos Deputados, o direito de acesso proporcional aos dois terços do tempo destinado à propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão, considerada a representação dos deputados federais que migrarem diretamente dos partidos pelos quais foram eleitos para a nova legenda no momento de sua criação.

Mesmo diante dessa decisão do Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional editou a Lei n.º 12.875/2013 conteúdo idêntico ao que continha o ato normativo que havia sido declarado inconstitucional pela Corte no julgamento da ADI 4.430.

Iniciada a vigência da Lei nº 12.875/13, foi proposta a ADI 5.105, ambiente no qual foi foram travados intensos debates na Corte acerca da reação legislativa ao posicionamento antes firmado pelo Supremo Tribunal Federal.

Em síntese, o posicionamento da Corte foi no sentido de que o Congresso Nacional detinha o poder de editar uma nova lei com idêntico conteúdo, desde que afastasse os argumentos levantados pelo Supremo quando do julgamento da ação direta. Caso não o fizesse, a lei já surgiria no fundamento jurídico com presunção relativa de inconstitucionalidade.

Afora o debate relativo à vinculação do Poder Legislativo, o que importa para o presente trabalho é que o entendimento da Corte no julgamento da ADI 5.105 foi no sentido de que, ainda que de forma fraca, os fundamentos da decisão do Supremo proferido em sede de controle de constitucionalidade vinculariam de algum o modo o Poder Legislativo, devendo este, no mínimo, desincumbir-se do ônus de afastar o precedente quando da edição do novo ato normativo, seja infirmando que o precedente não seria aplicável ao caso, seja demonstrando que as razões que ensejaram a prolação da decisão não mais subsistem (overruling).

Este, inclusive, é o pensamento de Marinoni, Mitidiero e Sarlet[10]:

O legislativo não está impedido, em razão da eficácia vinculante, de editar lei com conteúdo idêntico ao de lei já proclamada inconstitucional pelo STF. Até porque o Legislativo pode entender que existem novas circunstâncias, como a transformação da realidade ou dos valores sociais, que imponham a compreensão do texto num sentido constitucional. Porém, isso não quer dizer que a atuação legislativa, destituída de qualquer preocupação com a legitimidade constitucional do texto, possa se impor simplesmente para negar os efeitos da decisão da Suprema Corte. Quando inexiste como pensar em nova circunstância a justificar a atuação do legislador, a lei não se sobrepõe à decisão de inconstitucionalidade.

  1. Conclusão

Após tudo o quanto exposto, conclui-se que talvez tenha chegado a hora de reexaminar o papel dos precedentes judiciais no direito brasileiro com mais vagar, tenham eles origem no controle abstrato de constitucionalidade ou em casos concretos. Isto é, na sociedade moderna atual não é mais possível afirmar que somente as leis são fontes primárias de direito e os precedentes judiciais são meramente ilustrativos.

O tema ganha especial relevo quando estar-se diante de decisão judicial proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, cuja vinculação da parte dispositiva decorre diretamente do Texto Constitucional (art. 102, §2º, CRFB), mas não há previsão expressa acerca da vinculação da sua ratio decidendi.

Deve-se repensar o instituto a fim de conferir maior relevância aos fundamentos da decisão proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, assim como começou a ser delineado na ADI 5.105/DF.

Não se defende a vinculação forte do Poder Legislativo. Não é isso. O que se propõe é que o ônus ao Legislativo de superar os fundamentos exaustivamente debatidos pelo Supremo ao declarar inconstitucional lei com idêntico teor de eventual novo projeto de lei ou qualquer outro ato normativo. Uma vez demonstrada a superação dos fundamentados delineados pelo Supremo, o novel ato normativo poderia passar a produzir efeitos no mundo jurídico, sob pena de já nascer com a pecha de “presunção iuris tantum de inconstitucionalidade”, consoante sentenciou o Min. Luiz Fux quando do julgamento da ADI n.º 5.105[11].

O fato é que as razões de decidir do acórdão proferido em sede de controle concentrado de constitucionalidade, em um ambiente em que os precedentes judiciais ganham relevo, devem no mínimo orientar os posicionamentos futuros dos Poderes estatais.

Caso os fundamentos que embasaram a decisão sejam superados com a evolução da sociedade, o sistema deve valer-se de técnicas como o overruling ou outras técnicas relativas à superação dos precedentes. Mas o que importa para cá é que os motivos determinantes que ensejaram a decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade, deveriam vincular todos os Poderes constituídos, a fim de prestigiar a homogeneidade do sistema.

Óbvio que tal assertiva prospectiva ainda precisa ser analisada sob a ótica da posição contramajoritária de Alexander Bickel, mas a ideia do presente trabalho é tão somente chamar a atenção para a necessidade de repensar a força da ratio decidendi das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado de constitucionalidade.

 

[1] VICTOR, Sérgio Antônio Ferreira. Diálogo institucional e controle de constitucionalidade: debate entre o STF e o Congresso Nacional. São Paulo: Editora Saraiva, 2015, págs. 44/49.

[2] Embora o dispositivo faça referência apenas às ações direta de inconstitucionalidade de declaratória de constitucionalidade, a arguição de descumprimento de preceito fundamental, enquanto espécie de instrumento de controle de constitucionalidade das normas, segue o mesmo regramento, consoante dispõe o artigo 10 da Lei n.º 9.882/99.

[3] STF, Reclamação (Rcl) n.º1.987, voto do Min. Carlos Velloso.

[4] SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, pág. 1066.

[5] SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, pág. 1071.

[6] SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, pág. 1071.

[7] SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, pág. 1072

[8] STF, Reclamação (Rcl) n.º1.987, voto do Min. Carlos Velloso.

[9] SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, pág. 1073.

[10] SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, págs. 1075/6.

[11] STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 5.105, voto do Min. Luiz Fux, Relator.

Deixe um comentário

Your email address will not be published. Required fields are marked *

https://barretodolabella.com.br/wp-content/uploads/2021/01/logotipo.png

Filiais nas principais cidades do Brasil // Estamos onde nosso cliente está

Todos os direitos reservados

Leia nossa política de privacidade

Desenvolvido por Design C22