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ArtigosA fundamentação da Justiça: o Juiz das Garantias como defensor da imparcialidade no sistema legal

No término de 2019, no dia 24 de dezembro, foi promulgada a Lei nº 13.964, conhecida como “Pacote Anticrime”. Este projeto de lei teve como principal objetivo aprimorar a legislação penal e processual penal do Brasil. Além de trazer alterações no Código Penal e na Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210/84), a lei também introduziu uma mudança significativa no Código de Processo Penal, notadamente com a criação do papel do “juiz das garantias”.

A instituição do Juiz das Garantias foi estabelecida no artigo 3º-B do Código de Processo Penal, com a seguinte previsão: “Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário […]”. Resumidamente, esse juiz teria a responsabilidade de garantir a legalidade dos procedimentos realizados durante a investigação criminal, incluindo a análise de pedidos de prisão preventiva. Além disso, teria a atribuição de decidir sobre a aceitação da denúncia ou queixa, se e quando apresentadas, de maneira mais ampla.

No Brasil, tradicionalmente, o juiz que participa da fase inicial da investigação, quer ativamente (atuando como juiz-inquisidor), ou por meio de convocação, é considerado prevento e, como tal, será o responsável por decidir no processo subsequente. Os prejuízos de ter o mesmo juiz envolvido tanto na fase pré-processual quanto no julgamento oral do caso penal são evidentes e já foram objeto de numerosas decisões pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Essa questão também motivou mudanças legislativas significativas em vários países europeus. Embora se mencione a novidade do sistema do “doble juez” no ordenamento jurídico brasileiro, conforme definido pela doutrina chilena, esse modelo já é uma realidade em vários países, incluindo na América do Sul, como o Chile e o Uruguai, e também tem uma presença mais ampla no direito italiano.

No entanto, antes da entrada em vigor dessa lei, que estava prevista para ter um período de trinta dias de vacância, algumas Ações Diretas de Inconstitucionalidade foram apresentadas perante o Supremo Tribunal Federal, alegando a presença de vícios formais e materiais que justificavam tais contestações. São as Ações Diretas de Inconstitucionalidade números 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305. Nestas, alegou-se, em suma, a inconstitucionalidade do juiz das garantias com base nos seguintes fundamentos principais: (a) violação da Constituição Federal devido a falhas de competência e iniciativa legislativa; (b) violação do princípio federativo; (c) violação dos princípios do juiz natural, da igualdade e da segurança jurídica; e (d) violação similar ao disposto no artigo 169, §1º, da Constituição Federal de 1988, pois a implementação do “juiz das garantias” acarretaria necessariamente em aumento de despesas, sem previsão orçamentária correspondente.

A natureza multidisciplinar do tema merece destaque nesta perspectiva. Ao considerar as disposições constitucionais, torna-se evidente que tanto a doutrina jurídica constitucional quanto a Teoria Geral do Processo Penal serão objetos de debate intenso. É nesse ponto que encontramos a importância acadêmica da questão abordada.

Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 tem havido uma busca pela implementação plena de um processo penal baseado no sistema acusatório, deixando para trás o modelo inquisitorial de um código cujas bases foram estabelecidas durante o período do Estado Novo (1930-1945), caracterizado pela concentração de poderes instrutórios nas mãos dos juízes, conferindo-lhes um papel central no processo. Entretanto, o Código de Processo Penal, estabelecido pelo Decreto-Lei 3.689/1941 e influenciado pela legislação italiana da década de 1930, refletia um caráter autoritário devido à sua associação com o regime fascista vigente na época. Essa mentalidade permeou tão profundamente que nem mesmo a reforma processual de 2008 conseguiu eliminar completamente do Código a influência inquisitória e autoritária, a qual se mostrava incompatível com os princípios democráticos estabelecidos na ordem constitucional.

Nesse sentido, o Juiz das Garantias, introduzido pelo artigo 3º-B mediante a Lei nº 13.964/2019, é um órgão judiciário encarregado de supervisionar a legalidade de todas as investigações criminais. Nessa função, é informado sobre todas as investigações em andamento e tem autoridade para tomar decisões sobre questões que requerem reserva de jurisdição, como a decretação de prisão preventiva ou temporária, bem como a quebra de sigilo bancário e fiscal, entre outras medidas.

Portanto, a introdução do Juiz das Garantias visa conciliar o princípio da imparcialidade judicial, garantindo que o magistrado responsável pela sentença tenha acesso pela primeira vez às provas durante o processo judicial, visto que estas devem ser apresentadas durante a fase de instrução criminal, exceto em casos de provas antecipadas. Esse arranjo busca evitar qualquer influência subjetiva no julgamento.

A imparcialidade do órgão jurisdicional é considerada um “princípio supremo do processo” e, como tal, é fundamental para o desenvolvimento adequado e a conclusão justa da acusação e do caso penal. A estrutura dialética de um processo penal constitucional e democrático é construída sobre essa base de imparcialidade. No entanto, a fenomenologia processual é complexa e sensível, e a posição do juiz pode determinar se o processo segue um modelo acusatório e democrático ou se adota uma abordagem inquisitória e autoritária. Alterar a posição do juiz pode representar uma mudança completa na estrutura do processo. Desse modo, essa é a postura que o juiz deve assumir ao ser convocado para participar do inquérito policial: atuar como guardião dos direitos fundamentais do indivíduo sob investigação.

Nessa toada, é certo dizer que, a participação do juiz na fase pré-processual (seja ela através do inquérito policial, investigação conduzida pelo Ministério Público, etc.) é e deve ser extremamente restrita. O papel ideal do juiz não é o de um investigador ou instrutor, mas sim o de um fiscal da legalidade e protetor dos direitos fundamentais da pessoa sob investigação. O juiz não deve direcionar a investigação policial, nem mesmo estar presente durante seus procedimentos, mantendo-se completamente imparcial e distante das atividades policiais. Geralmente, o juiz só deve intervir quando solicitado, especialmente diante de medidas investigativas que requerem reserva de jurisdição.

Assim, é preferível que o juiz permaneça na fase pré-processual como um guardião, não como um interrogador. Os recursos disponíveis para impugnar as ações policiais ou do promotor durante a investigação preliminar – especialmente o habeas corpus e o mandado de segurança – colocam o juiz na função de supervisor judicial, incumbido de decidir sobre medidas que possam restringir ou ameaçar os direitos fundamentais da pessoa sob investigação. A participação do órgão jurisdicional é contingente e rara. Isso ocorre porque o inquérito policial pode ser iniciado, conduzido e concluído sem a necessidade de intervenção judicial. O juiz não é uma figura essencial na fase pré-processual e só será convocado quando a excepcionalidade da situação demandar autorização ou supervisão judicial, ou ainda quando a pessoa sob investigação estiver enfrentando restrições em seu direito de defesa, acesso às provas, aos autos, entre outros, por parte do investigador.

É importante ressaltar dois grandes riscos enfrentados pelo juiz brasileiro ao atuar na fase pré-processual e, em seguida, julgar o caso: a postura inquisitiva, que envolve a coleta de provas por iniciativa própria, como permitido formalmente pelo artigo 156, I do Código de Processo Penal; e, mesmo que não adote uma postura inquisitiva (sendo um juiz atuante), o fato de autorizar medidas como busca e apreensão, interceptação telefônica ou prisão cautelar, entre outras restrições aos direitos fundamentais, pode levar a pré-julgamentos claros, resultando em sérios prejuízos cognitivos para o exercício posterior da jurisdição no processo.

Portanto, independentemente de o juiz adotar uma postura ativa, inquisitiva, ou mesmo uma postura passiva (decidindo mediante solicitação), o risco de pré-julgamentos e de influências que possam comprometer sua imparcialidade demanda a adoção da figura do juiz de garantias no Brasil – responsável por atuar na fase pré-processual e que não poderá julgar o caso. Além disso, é necessário transformar a prevenção de competência de causa de fixação para uma causa de exclusão da competência.

Como evidenciado, tanto pelo viés do direito processual, quanto pelo âmbito da psicologia social, há um consenso incontestável na discussão sobre a importância do juiz de garantias: sua presença é fundamental para garantir uma jurisdição imparcial. Reconhecendo os prejuízos para a imparcialidade do julgador decorrentes de seu envolvimento com os elementos de prova durante o inquérito policial, o objetivo é afastá-lo dessa fase investigativa em prol da efetividade na prestação jurisdicional subsequente. Essa prestação jurisdicional continua e continuará submetida à orientação estabelecida pela Constituição Democrática de 1988, que visa à proteção dos direitos fundamentais, sem exigir do magistrado um comportamento desumano, como ocorre atualmente.

Portanto, não faz sentido criticar simplificadamente a introdução dessa nova figura do juiz de garantias, alegando que sua função já está coberta pela função atual do juiz. O objetivo aqui não é apenas promover uma ideologia que privilegie os interesses individuais sobre os coletivos. O juiz das garantias representa uma melhoria (ou até mesmo uma tentativa de resgate) do atual sistema de jurisdição penal. Esse sistema se torna inválido, ilegítimo e ilegal se não for exercido de forma imparcial. Isso é crucial e beneficia tanto o indivíduo quanto a sociedade como um todo. O objetivo dessa proposta, mais uma vez, é fornecer as condições necessárias para que o juiz do caso seja imparcial e autônomo, sem ser inadvertidamente influenciado pelo processo.

O que se percebe nessa argumentação é o uso de uma desculpa recorrente, já conhecida por ser utilizada para justificar questões como a falta de Defensoria Pública em alguns estados e a superlotação dos presídios do país. Essa desculpa é empregada para encobrir o antigo e prejudicial desejo de mudar o sistema apenas superficialmente, mantendo tudo essencialmente como está. Isso resulta na preservação da estrutura inquisitorial do atual processo penal brasileiro, que foi originalmente concebida durante o período do Estado Novo.

Assim, com base nos argumentos apresentados nesta breve dissertação, a interpretação deve ser favorável à constitucionalidade do juiz das garantias. Em conclusão, é crucial reiterar a necessidade de implementação do juiz das garantias para garantir um processo penal alinhado com os princípios democráticos e constitucionais, bem como para garantir uma prestação jurisdicional eficaz. A partir do embasamento teórico fornecido, a não adoção do juiz das garantias representaria um golpe na imparcialidade judicial, que não seria capaz de ser plenamente exercida no âmbito do Código de Processo Penal proposto. Isso implica em comprometer não apenas a jurisdição em si (que é sua essência), mas também o Estado de Direito como um todo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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