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ArtigosRacismo e Injúria Racial no ambiente cibernético: Entendendo as Divergências e Ramificações Jurídicas

Com o crescente aumento da utilização da internet como meio de disseminação de crimes de ódio, como o racismo e a injúria racial, torna-se fundamental destacar que tais atos não apenas afetam a honra subjetiva do indivíduo, mas também impactam a coletividade, dependendo do contexto em que ocorrem. No entanto, a falta de clareza na definição do termo “racismo” na legislação possibilita interpretações amplas, o que resulta em divergências na doutrina e na jurisprudência. Isso pode levar à semelhança entre esses crimes (racismo e injúria racial), podendo ocasionar confusões ou até mesmo julgamentos equivocados como se fossem iguais.

A ascensão da internet alterou profundamente a maneira como cada indivíduo percebe o mundo e redefiniu as dinâmicas das relações interpessoais. Cada pessoa tem sua própria visão do mundo e de como ele é estruturado, influenciada por sua cultura, costumes e nível de conhecimento. Durante a infância, são estabelecidos os padrões de integração social e os grupos aos quais cada indivíduo se associa, moldando assim sua vida adulta. Nas redes sociais, esses padrões persistem e são fundamentais para o estabelecimento e fortalecimento das relações interpessoais.

Uma das questões significativas decorrentes da popularização das redes sociais está relacionada à liberdade que elas proporcionam. Inicialmente, as interações estabelecidas tendem a ser superficiais, uma vez que os usuários tendem a fazer julgamentos com base em seus próprios desejos, anseios e perspectivas. Eles acabam reproduzindo ideais de perfeição e os compartilham de forma indiscriminada por meio de postagens, contribuindo para a formação de estereótipos pré-concebidos. Esses estereótipos, enraizados em suas consciências, levam à marginalização e exclusão daqueles que não se encaixam ou não se adaptam a esses padrões. Em suma, aquilo que deveria servir como uma ferramenta de interação social entre indivíduos muitas vezes se transforma em uma fonte de disseminação de preconceito.

O tema do preconceito racial é um assunto de relevância constante, frequentemente objeto de debates prolongados. Infelizmente, a sociedade contemporânea continua a gerar e disseminar o desprezo pelo povo negro de maneira generalizada. É amplamente reconhecido que a Constituição Federal preconiza a igualdade entre todas as pessoas, fundamentada no respeito à dignidade humana e na busca por uma sociedade livre, justa e solidária. Da mesma forma, a Carta Magna estabelece que a liberdade de expressão de cada indivíduo não deve ser limitada, mas deve ser exercida com respeito à honra e à integridade de cada ser humano.

De acordo com Orlandi, citado por Machado (2001, p. 197), o preconceito está ligado à submissão dos sentidos e da razão a um discurso carente de fundamentação, o qual tende a levar os indivíduos a não respeitarem as diferenças no outro, vejamos:

Uma discursividade que circula sem sustentação em condições reais e fortemente mantida por um poder dizer que apaga [silencia] sentidos e razões da própria maneira de significar. Os sentidos não podem sempre ser os mesmos, por definição. Os mesmos fatos, coisas e seres têm sentidos diferentes de acordo com as suas condições de existência e de produção. No entanto, há um imaginário social que, na história, vai constituindo direções para esses sentidos, hierarquizando-os, valorizando uns em detrimento de outros, homogeneizando-os de acordo com as relações de sentidos e logo, as relações sociais. (ORLANDI, 2001 apud MACHADO, 2007).

Assim, o preconceito é fundamentado em julgamentos prévios desprovidos de conhecimento sólido, o que resulta no erro daquele que o perpetua. Frequentemente, pessoas negras enfrentam diferentes manifestações de preconceito e segregação racial, muitas das quais ocorrem de maneira indireta. Por exemplo, em piadas entre “amigos”, são comuns comparações entre a cor da pele do alvo da brincadeira e objetos ou características associadas à cor negra. Atualmente, os meios de comunicação abordam questões relacionadas ao preconceito racial, porém, de forma indireta, acabam por reproduzi-lo em suas programações. Nas novelas e séries, é comum que atores e atrizes negros frequentemente desempenhem papéis de escravos, empregadas domésticas ou qualquer outro papel que sugira submissão a personagens brancos. Além disso, as campanhas publicitárias muitas vezes diminuem as características dos negros em anúncios e propagandas.

Quando se trata desse assunto, é crucial debater a importância da definição do conceito de Crime de Ódio. As expressões “crime de ódio” e “discurso de ódio” estão se tornando cada vez mais comuns no vocabulário da sociedade em geral, amplamente difundidas pela mídia. Além disso, esses termos estão sendo cada vez mais mencionados nos registros de ocorrências policiais, na literatura jurídica e na jurisprudência penal nacional. O conceito abordado é tão amplo que engloba qualquer conduta criminosa motivada, total ou parcialmente, por preconceito em relação a alguma característica da vítima, seja esta característica real ou percebida.

Portanto, é importante estabelecer características distintas e abordagens diferenciadas para os diversos crimes discutidos aqui: o racismo e a injúria racial. Conforme a jurisprudência predominante e a legislação vigente no ordenamento jurídico brasileiro, o critério a ser empregado para distinguir as condutas e, consequentemente, classificá-las corretamente nos tipos penais estabelecidos, deve ser a abrangência das expressões, gestos ou qualquer forma de manifestação do pensamento preconceituoso.

De forma mais simples e didática, podemos definir da seguinte maneira: quando a ofensa se restringe exclusivamente à esfera jurídica de um indivíduo, como por exemplo, referir-se a um negro envolvido em um acidente de trânsito como “preto safado”, estaríamos, em princípio, diante do crime de injúria qualificada pelo preconceito, conforme previsto no artigo 140, §3º, do Código Penal. Nesse caso, a ofensa se limitaria à honra subjetiva da vítima.

Analisando, porém, em uma situação diferente envolvendo precisamente o mesmo conjunto de circunstâncias: se, após o acidente, alguém afirmar “só podia ser coisa de preto mesmo”, estaríamos diante da caracterização do delito previsto no artigo 20, caput, da Lei nº 7.716/89. Neste caso, apesar de a frase ser dirigida a uma pessoa específica, está claramente revelando um preconceito em relação à raça negra ou àqueles que têm a “cor preta”, uma vez que a expressão usada implica que todo negro ou pessoa de cor preta comete atos inadequados. Assim, quem se expressa como no segundo exemplo está, de fato, praticando o preconceito, evidenciando a clara discriminação do grupo ao qual a vítima pertence ou aparenta pertencer.

É necessário reconhecer, portanto, que os interesses jurídicos protegidos nos delitos de injúria e de racismo (ou delitos de preconceito e discriminação estabelecidos na Lei nº 7.716/89) são, ainda que de forma sutil em atitudes concretas, distintos: enquanto o primeiro visa proteger a honra subjetiva da vítima, o segundo tem como objetivo preservar o princípio da igualdade.

Da mesma forma, é relevante mencionar as ementas dos acórdãos a seguir, proferidos nos tribunais de diferentes estados do país:

APELAÇÃO CRIMINAL. DIREITOS CONSTITUCIONAIS. LIBERDADE DE IMPRENSA. HONRA. PONDERAÇÃO. CRIMES. INJÚRIA RACIAL E RACISMO. DIFERENÇA. ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO. PRIMEIRA IMPUTAÇÃO. DOLO DE INJURIAR. PRESENÇA. CONDENAÇÃO. SEGUNDA IMPUTAÇÃO. DOLO. AUSÊNCIA. ABSOLVIÇÃO

(…)

III – A distinção entre os crimes de preconceito e injúria preconceituosa reside no elemento subjetivo do tipo. Configurará o delito de discriminação se a intenção do réu for atingir número indeterminado de pessoas que compõem um grupo e o de injúria preconceituosa se o objetivo do autor for atingir a honra de determinada pessoa, valendo-se de sua cor para intensificar a ofensa.

(…)

PENAL. PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. CRIME DE INJÚRIA RACIAL. QUALIFICAÇÃO. OFENSAS RELACIONADAS À COR DA VÍTIMA. HONRA SUBJETIVA. CONDUTA QUE SE SUBSUME AO DELITO DE INÚRIA QUALIFICADA POR PRECONCEITO RACIAL, E NÃO AO CRIME DE RACISMO. AÇÃO PENAL PRIVADA. VERIFICAÇÃO DE COISA JULGADA MATERIAL. DECADÊNCIA. IMPROVIMENTO. 1. Diante da análise do conjunto probatório, percebe-se a presença de expressões verbais com conteúdo discriminatório. Não obstante, tais expressões não foram feitas com o intuito de menosprezar a raça negra como um todo, mas unicamente para ferir a honra subjetiva da vítima, tipificando, assim, a conduta descrita no art. 140, § 3º, do Código Penal, e não o crime capitulado no art. 20, da Lei n.º 7.716/89 (discriminação racial).

Entretanto, faz-se necessário destacar o entendimento de que a “injúria racial” é uma forma de crime de racismo, logo, também imprescritível. A distinção entre “injúria racial” e o crime de racismo é uma construção estabelecida pela doutrina e jurisprudência.

Nesse contexto, é essencial ressaltar que, o entendimento predominante, fundamentado no princípio da legalidade, é que apenas constitui crime de racismo a discriminação baseada em raça, cor, etnia, religião ou origem nacional, nos termos exatos da redação atual da Lei 7.716/89. Muitos autores ressaltam a necessidade de uma revisão legislativa para incluir na mencionada lei a punição de todas as formas de discriminação, seja por motivação racial, sexual, orientação sexual, idade, estado civil, saúde, deficiência física, condição social, filiação sindical ou partidária, crenças religiosas ou convicções políticas, ou ainda por origem nacional.

É claro que todas as vítimas dos crimes cometidos tiveram sua dignidade diminuída de maneira igual. Todos os seres humanos – independentemente de cor, raça, sexo, orientação sexual, religião, idade ou gênero – merecem o mesmo tratamento jurídico no que diz respeito à proteção da dignidade. O crime de racismo, ao discriminar, diminuir e incitar o ódio contra pessoas com características específicas, viola diretamente a dignidade humana de suas vítimas, colocando-as em uma posição de inferioridade, humilhação, diminuição e vergonha pessoal. No entanto, como é conhecido, é inadmissível que o Direito Penal recorra a interpretações ampliativas ou à aplicação de analogias in malam partem, contrariando o princípio constitucional da legalidade penal: não há crime sem uma lei anterior que o defina, nem pena sem uma prévia determinação legal (CF/88, artigo 5º, inciso XXXIX).

Assim sendo, surge a indagação: quais são as ramificações penais do crime de racismo cometido através da internet?

Augusto Rossini, um dos primeiros pesquisadores a estudar os crimes eletrônicos no Brasil, ensina:

De fato, a liberdade de expressão que atinge seu ápice através da Internet, permite que pessoas com desvio de caráter manifestem seus mais odiosos preconceitos, constituindo um paradoxo que a alta tecnologia instaura, pois, ao mesmo tempo em que a Rede oferece tablado para que qualquer indivíduo manifeste seu pensamento, cria grupos reacionários dos mais variados matizes. É o outro lado da moeda. É a “modernidade ao contrário”. Por este motivo é que, em qualquer das hipóteses em que os limites do aceitável sejam ultrapassados, e isto está bem claro nos tipos citados, é a vez do Direito Penal interferir, como vem fazendo quando formalmente instado, a exemplo de algumas poucas condenações conhecidas, em número insignificante se comparadas à grande quantidade de informações racistas veiculadas na Rede. De fato, há dispositivo legal que permita a repressão. Necessária a provocação formal dos órgãos de persecução.

Primeiramente, é crucial realizar a coleta e preservação da evidência digital, garantindo que seja admissível, autêntica, completa, confiável e convincente. Após tomar as providências iniciais recomendadas e reunir as evidências armazenadas em formato digital e impresso, incluindo a indicação precisa da data e hora em que o conteúdo foi acessado, a vítima pode se dirigir a um cartório de notas para solicitar a elaboração de uma ata notarial. Esse documento é dotado de fé pública e atesta que o tabelião acessou a internet e verificou com precisão as mensagens, fotos ou vídeos postados. Embora seja um tema emergente, a doutrina já está começando a explorar essa nova forma de comprovação de fatos veiculados na internet. O essencial é que as vítimas relatem prontamente e de forma eficaz os crimes às autoridades competentes, de modo que essas graves infrações não fiquem impunes.

Diante de todas essas inovações tecnológicas, o campo jurídico enfrenta situações não contempladas anteriormente no ordenamento jurídico nacional, o que requer a adoção de novas abordagens, especialmente no estudo dos crimes virtuais de ódio, mais especificamente o racismo e a injúria racial, que violam tanto a honra subjetiva do indivíduo quanto a coletividade.

É possível constatar que o anonimato na internet é relativo, uma vez que pode ser desvendado pelas autoridades através da identificação da fonte das supostas ofensas do agressor, que corresponde ao endereço de IP do computador transmissor. No entanto, a investigação só pode ser iniciada quando esses crimes são denunciados, e é importante notar que há uma escassez de denúncias por parte das vítimas, muitas vezes se sentindo coagidas pelos supostos criminosos. É relevante destacar que o ordenamento jurídico brasileiro não impõe obstáculos à utilização de provas eletrônicas, o que representa um aspecto positivo e fundamental na hora de comprovar o delito em meio virtual.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ALBUQUERQUE, Roberto Chacon. Criminalidade Informática. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2006.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed. São Paulo:Malheiros, 2009

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CRESPO, Marcelo Xavier de Freitas. Crimes Digitais. São Paulo: Saraiva, 2011

MACHADO, C.P. A designação da palavra preconceito em dicionários Atuais.

Dissertação de pós-graduação em linguística da Unicamp. São Paulo. p. 204. 26 Fev. 2007. Disponível em: revistas.iel.unicamp.br/index.php/sinteses/article/download/831/590

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem. TempoSocial (Revista de Sociologia da USP), São Paulo, v. 19, n. 1, p. 287-308, nov. 2006.

POTIGUAR, Alex. Liberdade de Expressão e Discurso de Ódio. 1ª ed. Brasília: Editora Consulex, 2012

ROSSINI, Augusto Eduardo de Souza. Informática, telemática e direito penal. São Paulo: Memória Jurídica, 2004.

SILVA, Amaury; SILVA, Artur Carlos. Crimes de racismo. São Paulo: J. H. Mizuno, 2012.

 

 

 

 

 

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