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ArtigosA responsabilidade civil dos notários e oficiais de registro

Nos termos do entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal (tema nº 777), os cartórios extrajudiciais não possuem personalidade jurídica própria, razão pela qual a responsabilidade civil decorrente da má prestação dos serviços cartorários é imputada, subjetivamente, aos tabeliães e oficiais de registros, titulares dos cartórios e, objetivamente, ao Estado.

Assim, os tabeliães e oficiais de registros, a quem foram conferidos os poderes e possuem os conhecimentos técnicos para análises e registros notariais, respondem pelos danos que, nesta qualidade, causarem a terceiros. Essa responsabilidade possui assento tanto legal (art. 22 da Lei 8.935/1994) quanto constitucional (arts. 37, § 6º e 236).

Entretanto, vale destacar que antes da modificação do artigo 22 pela Lei nº 13.286/2016, a responsabilidade dos notários e oficiais de registros era objetiva, tornando-se subjetiva apenas após a publicação da mencionada lei.

Diante desse cenário, surgem questionamentos sobre a possibilidade de se reconhecer a responsabilidade objetiva dos tabeliães e oficiais de registros por atos ocorridos antes da publicação da Lei nº 13.286/2016. Assim, o presente artigo objetivará apontar os entendimentos predominantes dos Tribunais pátrios sobre a matéria.

 

2 – O regime jurídico dos notários e registradores oficiais

Conforme já se escreveu no artigo intitulado “A responsabilidade civil direta e objetiva do Estado pelos danos causados a terceiros em decorrência da atividade notarial”, notários e registradores oficiais são particulares em colaboração com o poder público que exercem suas atividades in nomine do Estado, com lastro em delegação prescrita expressamente no texto constitucional (art. 236, CRFB/88).

A análise da natureza jurídica da delegação envolve a delimitação das diretrizes fundamentais estabelecidas pelo texto constitucional, que assim estabelece:

Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

§ 1º Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.

§ 2º Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.

§ 3º O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.

Nas lições de Luis Paulo Aliende Ribeiro[1], do texto constitucional se extraem quatro diretrizes básicas:

I. A natureza pública da função notarial e de registro e a imperatividade de sua delegação pelo Poder Público ao particular para seu exercício em caráter privado.

II. A necessidade de lei para regular as atividades, disciplinar as responsabilidades civil e criminal dos notários, oficiais de registro e seus prepostos, definir a fiscalização dos seus atos pelo Poder Judiciário, assim como a necessidade de lei federal para estabelecer normas gerais sobre emolumentos.

III. O ingresso na atividade mediante concurso público de provas e títulos.

IV. A impossibilidade de que qualquer unidade fique vaga, sem abertura de concurso, por mais de seis meses.

Ainda, de acordo com Maureci M. Velter Junior[2], os serviços notariais e registrais são obrigatoriamente transferidos a pessoas físicas por meio de delegação, estabelecendo um vínculo original e personalíssimo entre o Poder Público e o delegatário. As serventias notariais e registrais, conhecidas como “cartórios”, são meramente instituições administrativas, vinculadas à pessoa física do delegatário. O titular exerce o serviço em seu próprio nome, sem que a serventia possua personalidade jurídica. Acrescenta o autor que a delegação não é passível de negociação ou transferência, sendo conferida diretamente pelo Poder Público com base em condições pessoais específicas do delegatário.

Destaca-se que à vista da natureza estatal das funções que exercem, as figuras dos tabeliães e registradores oficiais se amoldam à categoria ampla de agentes públicos. Na esteira das lições de Celso Antônio Bandeira de Mello[3], os agentes públicos são todos aqueles que exercem funções estatais, podendo ser classificados em agentes políticos, servidores públicos ou particulares em colaboração com o Poder Público. Consoante destacado pelo mencionado autor, nesta última categoria estão incluídos os tabeliães e registradores oficiais, os quais, sem perderem sua qualidade de particulares, exercem função tipicamente pública.

Nessa perspectiva, considerando que i) os titulares das serventias de notas e registros exercem função de natureza pública; ii) o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos; e iii) os atos desses agentes estão sujeitos à fiscalização pelo ente estatal, os notários e os oficiais registradores são considerados agentes públicos, que exercem suas atividades in nomine do Estado.

3 – A responsabilidade dos notários e oficiais de registro conforme previsto no artigo 22 da Lei nº 8.935/1994

Aos tabeliães e oficiais de registros foram conferidas prerrogativas pelo Estado, de forma que se presume que estes sejam dotados de conhecimentos técnicos a fim de verificarem a autenticidade dos documentos e assinaturas os quais à sua serventia são apresentados, respondendo, desse modo, pelos danos que, nesta qualidade, causarem a outrem.

O artigo 22 da Lei n. 8.935/1994 previa que os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causarem a terceiros na prática de atos próprios da serventia, não havendo (até a publicação da Lei nº 13.286/2016) qualquer exigência acerca do elemento subjetivo (dolo ou culpa) para fins de responsabilização. Veja-se a redação do supracitado dispositivo legal:

“Art. 22. Os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros o direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos.”

Contudo, a Lei nº 13.286/2016 alterou a redação do art. 22 da Lei nº 8.935/1994, com o fim de modificar a responsabilidade civil dos notários e registradores para subjetiva:

“Art. 22. Os notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso.”

Assim, com o advento da Lei nº 13.286/2016 passou-se a ser necessária a comprovação do elemento culpa para a imputação de responsabilidade por danos causados a terceiros por tabeliães e o oficiais de registro.

Questão relevante é a possibilidade de se reconhecer a responsabilidade civil objetiva por atos ocorridos antes da alteração do dispositivo legal em comento. Cita-se, como exemplo, uma sentença anulatória de registro imobiliário transitada em julgado no ano de 2024, em que se reconheceu a invalidade de uma procuração outorgada por um proprietário de um imóvel no ano de 2015 e, portanto, antes da publicação da Lei nº 13.286/2016.

Sem adentrar na seara da existência ou não de prescrição (matéria que será objeto de um próximo artigo), cabe ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça entende pela aplicação da redação original do art. 22 da Lei nº 8.935/1994, quando os fatos tenham ocorrido antes da vigência do novo texto, ou seja, antes da publicação da Lei nº 13.286/2016, conforme excerto abaixo:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. RESPONSABILIDADE CIVIL DE TABELIÃES E REGISTRADORES. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL ULTIMADA COM BASE EM PROCURAÇÃO PÚBLICA CONTENDO ASSINATURA FALSA. EFICÁCIA VINCULANTE DO RE nº 842.846/SC NÃO VERIFICADA NO CASO CONCRETO. PRETENSÃO INDENIZATÓRIA SUBMETIDA A PRAZO PRESCRICIONAL TRIENAL. PRAZO QUE SE INICIOU COM O TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA QUE ANULOU O ATO NOTARIAL. FATOS OCORRIDOS ANTES DA LEI Nº 13.286/2016, QUE MODIFICOU O ART. 22 DA LEI Nº 8.935/94. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO. (…) 2. A responsabilidade civil dos Tabeliães e Registradores por atos da serventia ocorridos sob a égide do art. 22 da Lei nº 8.935/94, em sua redação original, é direta e objetiva, dispensando, portanto, demonstração de culpa ou dolo. 3. Apenas com o advento da Lei nº 13.286/2016 é que esses agentes públicos passaram a responder de forma subjetiva. 4. Recurso especial não provido (RECURSO ESPECIAL Nº 1849994 – DF (2018/0229037-9), Relator Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, j. 21/03/2023).

Assim, no exemplo acima citado, considerando que os fatos ocorreram no ano de 2015, ou seja, antes da alteração da redação do artigo 22 pela Lei nº 13.286/2016, a responsabilidade dos tabeliães e oficiais de registros envolvidos no ato anulado pela sentença transitada em julgado no ano de 2024 será direta e objetiva, dispensando a comprovação de culpa ou dolo de seus prepostos, bastando a existência de dano e nexo causal.

Ainda, quanto a legitimidade dos titulares dos cartórios pelos atos praticados por seus prepostos, o Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios consolidou e pacificou o seu entendimento, conforme se depreende do julgado abaixo colacionado:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. RECONHECIMENTO INDEVIDO DE FIRMA FALSA. RESPONSABILIDADE CIVIL DE TABELIÃO/NOTÁRIO. PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO. MERO DISSABOR. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. 1. Os notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis pelos prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem (art. 22 da Lei nº 8.935/94, com a redação dada pela Lei nº 13.286/16). 2. A caracterização dos danos morais demanda a comprovação de uma situação de tamanha gravidade que ofenda a honra ou abale sobremaneira o estado psicológico do indivíduo, circunstância não configurada na hipótese dos autos. 3. O direito à compensação por danos morais resulta, em regra, da comprovação da prática de um ato ilícito e da ocorrência de resultado danoso, além da existência de nexo causal entre eles, admitindo-se a presunção da ocorrência do dano moral apenas em situações excepcionais. 4. O reconhecimento incorreto de assinatura falsa como legítima configura mero dissabor da vida em sociedade e, por si só, não implica o reconhecimento do direito de reparação por dano moral. 5. Apelação conhecida e não provida. (Acórdão 1235729, 07163866520188070001, Relator: Robson Teixeira de Freitas, 8ª Turma Cível, data de julgamento: 11/3/2020, publicado no DJE: 18/3/2020.)

Portanto, de acordo com o entendimento dos Tribunais pátrios é possível o reconhecimento da responsabilidade objetiva dos notários e registradores oficiais por atos causadores de danos a terceiros ocorridos antes da publicação da Lei nº 13.286/2016, bastando a demonstração do elemento dano e do nexo de causalidade.

4 – Conclusão

Diante da análise do regime jurídico dos notários e registradores oficiais, é evidente que esses profissionais desempenham suas funções em colaboração com o poder público, exercendo atividades em nome do Estado por meio de delegação constitucional. A natureza jurídica dessa delegação é regida por diretrizes fundamentais expressas no texto constitucional, destacando a natureza pública da função, a necessidade de regulamentação legal, a realização de concursos públicos para ingresso na atividade, e a vedação à vacância prolongada das serventias.

Os serviços notariais e registrais, conhecidos como “cartórios”, são instituições administrativas vinculadas à pessoa física do delegatário, sendo a delegação intransferível e baseada em condições pessoais específicas. Nessa perspectiva, os tabeliães e registradores oficiais, embora mantenham sua qualidade de particulares, são considerados agentes públicos, exercendo funções tipicamente públicas.

No que diz respeito à responsabilidade dos notários e oficiais de registro, a legislação, inicialmente, estabelecia uma responsabilidade civil objetiva, que dispensava a comprovação de culpa ou dolo para responsabilização por danos a terceiros. Contudo, a Lei nº 13.286/2016 alterou esse cenário, impondo a necessidade de comprovação do elemento culpa para a responsabilização.

Não obstante, conforme o entendimento dos Tribunais pátrios, é possível reconhecer a responsabilidade objetiva dos notários e registradores por atos causadores de danos a terceiros ocorridos antes da publicação da Lei nº 13.286/2016, desde que seja demonstrado o dano e o nexo de causalidade. A jurisprudência também destaca a responsabilidade dos titulares dos cartórios pelos atos de seus prepostos, consolidando a compreensão de que esses profissionais atuam como agentes públicos, mesmo mantendo sua natureza privada.

5 – Referências

 BRASIL. Constituição da República Federativo do Brasil de 1988. Brasília/DF, 1988.

BRASIL. Lei 13.286/2016. Brasília/DF, 2016.

BRASIL. Lei nº 8.935/1994. Brasília/DF, 1994.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1849994/DF. Relator: Ministro Moura Ribeiro. Data de julgamento: 21/03/2023.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Apelação nº 07163866520188070001. Relator: Robson Teixeira de Freitas, 8ª Turma Cível. Data de julgamento: 11/3/2020.

MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 26ª Edição, 2008, p. 249.

 RIBEIRO, Luis Paulo Aliende. Regulação da função pública notarial e de registro. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 42-43.

VELTER JUNIOR, Maureci Marcelo; SILVA, Rafael Peteffi da. Responsabilidade civil por atos praticados por notários e registradores. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 32/2022. p. 223 – 256. Jul – Set / 2022.

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[1] RIBEIRO, Luis Paulo Aliende. Regulação da função pública notarial e de registro. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 42-43.

[2] VELTER JUNIOR, Maureci Marcelo; SILVA, Rafael Peteffi da. Responsabilidade civil por atos praticados por notários e registradores. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 32/2022. p. 223 – 256. Jul – Set / 2022.

[3] MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 26ª Edição, 2008, p. 249.

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