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ArtigosEntre o rigor formal e a aplicação do princípio da razoabilidade: uma análise perspectiva do Processo Licitatório

Questão controvertida que frequentemente vem à tona no âmbito dos Processos Licitatórios é um conflito aparente entre a necessidade de observância estrita das normas editalícias, por força dos princípios da legalidade e da vinculação ao instrumento convocatório, e a igual necessidade de observância do princípio da razoabilidade.

A Lei 8.666/93, cuja vigência se estendeu durante longas três décadas, estava, sob análise primeira, marcada por um excessivo rigor formal, uma aplicação de normas em lógica de “tudo ou nada”, em que – por menor que fosse a falha – esta deveria ser punida e sancionada, independentemente de o resultado final atingido ser positivo para a Administração.

No transcorrer dos anos, a Jurisprudência, a Doutrina e o próprio Poder Legislativo foram lapidando esta rigidez de forma a permitir maior aderência e observância da razoabilidade no transcorrer de Processos Administrativos, e, em específico, nos Processos Licitatórios.

Nesse sentido, desenvolveu-se nesse período o que se batizou de Princípio do Formalismo Moderado, que preconiza a necessidade de afastamento de regras de cunho tão somente formal quando comprovado que o objetivo da Administração Pública está devidamente cumprido, figurando como natural e lógico desdobramento do princípio constitucional da razoabilidade.

Já em 1999, a Lei 9.784 assim estabeleceu:

Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

(…)

IX – Adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados […]

 

A Lei 14.133/21, cuja vigência plena se iniciou neste ano de 2024, abraçando a construção jurisprudencial, legal e doutrinária que veio sendo tecida nos últimos anos, apresenta o paradigma constitucional da razoabilidade de forma muito mais clara, evidente e permeada em todos os seus artigos.

Nessa toada, importante destacar o Inciso III do Artigo 12 da Lei 14.133/2021, que ao estabelecer as regras a serem observadas nos Processos Licitatórios, assim dispõe:

Art. 12. No processo licitatório, observar-se-á o seguinte:

III – o desatendimento de exigências meramente formais que não comprometam a aferição da qualificação do licitante ou a compreensão do conteúdo de sua proposta não importará seu afastamento da licitação ou a invalidação do processo;

É demonstração clara do espírito da Nova Lei, que estabelece textualmente a necessidade de aceitação de propostas ou documentos de licitantes, apesar de terem cometido falhas formais que não alterem de forma substancial o conteúdo dos documentos e permitam que a Administração Pública atenda seus anseios e atinja seus objetivos.

Ou seja, apesar da necessidade de observância dos ditames do edital, há de se considerar o ideal de formalismo moderado como a marca central deste novo “milestone” licitatório, a Lei 14.133/21.

Assim, importante destacar que os processos licitatórios conduzidos pela Administração Pública não podem ter o formalismo como um fim, mas tão somente como um meio para o atingimento do objetivo da licitação: a contratação da proposta mais vantajosa para a Administração, impondo-se a observância ao chamado princípio do formalismo moderado.

Nessa linha de raciocínio, não se nega que o apreço à legalidade formal e o apego da Administração Pública às normas que a regem é elemento central e fundante do Estado de Direito. Não obstante, a aplicação e cumprimento à exatidão dos termos do edital não podem imperar quando demonstrado que, apesar de falhas formais, determinada proposta cumpre com o objetivo da Administração.

Dessa forma, há de se considerar na análise de possíveis atecnias o contexto em que o mesmo pode ter ocorrido, de forma a ser o edital licitatório analisado e aplicado em conjunto aos princípios da razoabilidade e formalismo moderado, garantindo que a Administração Pública atinja o fim que pretende.

Logo, a atuação da Administração não busca meramente preencher uma série de requisitos formais, mas tem como fito atingir um direito. Portanto, busca-se acima de tudo a consecução de um fim, e não a supervalorização de um meio. Fim este que deve, conforme os dizeres do artigo 11, I, da Lei n° 14.133/2021, estar direcionado a “assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública […]”

Se deve a Administração contratar visando a seleção da proposta que lhe garanta maior vantajosidade, todos os seus demais atos no decorrer da contratação devem ser dirigidos a beneficiar a Administração, benefício esse que engloba uma série de fatores, desde a contratação da forma mais célere possível até a contratação com a melhor técnica e/ou melhor preço.

Com efeito, o princípio do formalismo moderado significa, no processo administrativo, a adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados (art. 2º, par. único, IX, Lei n.º 9.784/99), de maneira que o conteúdo deve prevalecer sobre o formalismo extremo.

Assim, conseguindo a Administração Pública, ao licitar, atingir a seleção da proposta mais vantajosa ao ente público, não se pode desclassificar ou inabilitar tal proposta tão somente por falhas formais mínimas.

Por conta da incidência do princípio do formalismo moderado na instância administrativa, torna-se reprovável aferrar-se o Estado a rigores formalísticos para a prática de atos procedimentais cuja finalidade é atendida de outro modo.

Respeitada a segurança procedimental e a certeza jurídica do fim colimado no ato, não há lugar para o processo licitatório transmudar-se num fim em si mesmo, passando ele próprio a ser a causa de não se atingir um direito.

Nesse rol de ideias, a licitação e os atos que a constituem devem ser observados como meio, ferramenta e instrumento para a consecução do interesse da Administração Pública, o foco é o cumprimento dos objetivos dessa, e a lupa não deve incidir com mais precisão sobre a forma, mas sim sobre a conclusão da licitação e o atingimento da vantajosidade.

Dessa forma, no processo licitatório não deve imperar a sacralidade das formas, mas sim a instrumentalidade, de sorte que os atos processuais produzem efeitos jurídicos regulares se, mesmo quando não observada certa procedimentalidade, a finalidade buscada tenha sido alcançada.

Os jurisconsultos Carlos Ari Sundfeld e Benedicto Pereira Porto Neto afirmam:

O formalismo, é bem verdade, faz parte da licitação, e nela tem seu papel. Mas nem por isso a licitação pode ser transformada em uma cerimônia, na qual o que importa são as fórmulas sagradas, e não a substância da coisa[1].

Dando continuidade ao seu entendimento, o professor Sundfeld conclui:

não se pode imaginar a licitação como um conjunto de formalidades desvinculadas de seus fins. A licitação não é um jogo, em que se pode naturalmente ganhar ou perder em virtude de milimétrico desvio em relação ao alvo – risco que constitui a própria essência, e graça, dos esportes.[2]

De igual modo, o professor Rafael Carvalho Rezende de Oliveira leciona:

Não se pode perder de vista que a licitação é um procedimento instrumental que tem por objetivo uma finalidade específica: celebração do contrato com o licitante que apresentou melhor proposta. Por esta razão, a legislação tem flexibilizado algumas exigências formais, que não colocam em risco a isonomia, com o intuito de garantir maior competitividade.[3]

Ainda, pautando-se nesse princípio foi que a Nova Lei de Licitações, Lei 14.133, previu hipóteses absolutamente estritas para a desclassificação e inabilitação da empresa vencedora da licitação, apenas o admitindo quando do descumprimento extremo das exigências previstas pela lei e pelo edital; bem como estabelece a permissão de saneamento ou convalidação de atos praticados com vícios formais que não afetem os direitos dos participantes do certame ou o interesse público (ex.: art. 71, I, art. 147 etc.).

Nesse sentido, já é sólida a jurisprudência do Tribunal de Contas da União, que há muito já vem assim decidindo:

Falhas formais, sanáveis durante o processo licitatório, não devem levar à desclassificação da licitante. No curso de procedimentos licitatórios, a Administração Pública deve pautar-se pelo princípio do formalismo moderado, que prescreve a adoção de formas simples e suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados, promovendo, assim, a prevalência do conteúdo sobre o formalismo extremo, respeitadas, ainda, as praxes essenciais à proteção das prerrogativas dos administrados.

(TCU, Acórdão 357/2015-Plenário, Enunciado, Relator Ministro: BRUNO DANTAS)

 

Em arremate, observa-se que apesar da necessidade de observância das normas editalícias pela Administração Pública, esta deve fazer juízo de ponderação no caso concreto, de modo a cotejar a dimensão dos descompassos ao edital e a consequência das possíveis falhas identificadas, de forma que – em sendo tão somente falhas formais – possui a Administração Pública o dever de saneá-las junto aos licitantes ou até convalidá-las, com vistas ao objetivo final da licitação: a seleção da proposta mais vantajosa.

 

 

Referências Bibliográficas

BRASIL. Lei n° 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 22 de junho de 1993.

BRASIL. Lei n° 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 01 de fevereiro de 1999.

BRASIL. Lei n° 14.133, de 1° de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativo. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 01 de abril de 2021.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitação e contratos administrativos: teoria e prática. – 12. Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2023.

SUNDFELD, Carlos Ari; PORTO NETO, Benedicto Pereira. Licitação para concessão do serviço móvel celular. Zênite. ILC nº 49 – março/98.

TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, Acórdão 357/2015-Plenário, Enunciado, Relator Ministro: BRUNO DANTAS.

__________________________________

 

[1] SUNDFELD, Carlos Ari; PORTO NETO, Benedicto Pereira. Licitação para concessão do serviço móvel celular. Zênite. ILC nº 49 – março/98. p. 204

[2] SUNDFELD, Carlos Ari; PORTO NETO, Benedicto Pereira. Licitação para concessão do serviço móvel celular. Zênite. ILC nº 49 – março/98. p. 204

[3] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitação e contratos administrativos: teoria e prática. – 12. Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2023.

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